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O incômodo não passa e a conta parece não fechar. Enquanto governos estaduais divulgam estatísticas menos desanimadoras sobre violência e o Brasil registra o menor número de homicídios em 11 anos, a sensação de insegurança da população não diminui. De acordo com pesquisa Quaest divulgada no início do mês, a maior preocupação dos brasileiros é a violência, com 30% das respostas dos entrevistados. O que poderia ajudar a explicar essa discrepância entre os números oficiais e a percepção da população?
"Nem sempre a percepção subjetiva das pessoas sobre a sensação de insegurança acompanha a queda nos índices, até por que se olharmos com frieza e comparativamente, essas quedas não foram tão grandes assim e a situação ainda é muito ruim na maior parte do país”, afirma à Gazeta do Povo Celeste Leite dos Santos, promotora do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e presidente do Instituto Pró-Vítima. "Não tem nada para ser comemorado”, diz.
Para começar, existe uma confusão sobre os números, e melhorar não significa que ficou bom. O índice de homicídios — tanto em números absolutos como na taxa por 100 mil habitantes —, principal indicador de violência, não inclui as mortes em latrocínios (roubos que terminam em morte da vítima); lesão corporal seguida de morte (quando a morte não acontece na hora da agressão, e sim depois); causa indeterminada e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora. As mortes de policiais, durante o serviço ou não, entram nas estatísticas como homicídios. Somando-se tudo, a situação das mortes violentas piora.
Em São Paulo, por exemplo, a taxa de homicídios foi de 6,4 para 100 mil habitantes em 2023. Somando-se tudo, porém, a taxa sobe para 11,2 por 100 mil habitantes, quase o dobro. Os dados são do Atlas da Violência 2025, feito pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Outro fator é que nossos índices devem ser colocados em perspectiva para serem entendidos melhor. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, o mais recente disponível, o Brasil tinha no ano anterior uma taxa global de 22,8 mortes violentas intencionais, que já inclui todos os tipos, a cada 100 mil habitantes. Não obstante o número representar uma queda de 27,7% em relação a 2017, a situação ainda é grave.
A taxa brasileira é 18,8% maior do que a média regional da América Latina e Caribe, que em 2022 era de 19,2 homicídios por 100 mil habitantes, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). Segundo o escritório da ONU, em termos globais a taxa de mortes violentas intencionais no país é quase quatro vezes maior do que a taxa mundial de homicídios, de 5,8 mortes por 100 mil habitantes. No Brasil vivem aproximadamente 3% da população mundial, mas o país, sozinho, responde por cerca de 10% de todos os homicídios cometidos no planeta.
"Dito de outra forma, os níveis de violência letal no Brasil estão longe de serem considerados adequados e/ou condizentes com padrões mínimos de desenvolvimento humano e social”, afirma o relatório do anuário. "É preciso reconhecer que a tendência de queda é consistente e constante, mas é preciso alertar para o fato de o trajeto ainda ser longo e tortuoso. E esse caminho fica nítido na análise dos dados subnacionais, que mostram que a queda da violência letal no Brasil é desigual e heterogênea.”
Os menores indicadores de homicídios por 100 mil habitantes estão localizados nos estados do Sul, além de São Paulo, Distrito Federal e Minas Gerais. Já as maiores taxas se concentram nas regiões Norte e Nordeste. Santa Catarina é o estado mais seguro do Brasil e o Amapá, o mais inseguro.
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Crimes com mais visibilidade influenciam mais na sensação de segurança, aponta promotora
Os índices que medem a violência também são dinâmicos e não se movem em bloco. Enquanto os homicídios caíram, outros índices subiram. "Homicídio puro e simples é aquele caso mais grave mas também mais raro de violência, não é tão comum”, afirma a promotora do MP-SP.
"Existem crimes com mais visibilidade que influenciam mais na nossa sensação de segurança no dia-a-dia. O roubo, o estupro, o furto, o furto de veículo, invasão de propriedade: é isso que fica no inconsciente coletivo. Vários desses crimes tiveram redução residual e o estupro, inclusive, aumentou.”
Com aproximadamente 3% da população mundial, Brasil responde por cerca de 10% de todos os homicídios cometidos no planeta.
De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, por exemplo, o estado alcançou os menores índices dos crimes de homicídio e de roubo em 24 anos, no final do ano passado. Mas o número de homicídios dolosos na capital paulista aumentou 16% no primeiro bimestre deste ano em comparação a 2024. As tentativas de homicídio também aumentaram 51%, e os estupros cresceram 30%. Os latrocínios caíram 25% e os roubos, 14%. Os furtos cresceram 3%.
A concentração destes tipos de crimes em áreas nobres das capitais, com casos de grande repercussão, fazem com que seja alta a sensação de insegurança onde a concentração de eleitores é maior. A cidade de São Paulo, por exemplo, registra um roubo ou furto de celular a cada três minutos, mesmo com uma queda de 5% no primeiro trimestre deste ano em relação ao ano passado. Pinheiros, bairro tradicional de alto padrão na zona oeste, teve 1.023 ocorrências no período. Em 2024, a delegacia local registrou 3.569 assaltos, o recorde da série histórica iniciada em 2002.
A promotora critica que no Brasil trabalha-se a questão da segurança pública apenas no eixo criminológico, com foco no crime e no criminoso. “Falta prestar atenção e cuidar de um outro lado, que é o da vítima. O que o Estado brasileiro como um todo faz para acolher e minorar o sofrimento das pessoas que foram vítimas de crimes violentos?”, questiona.
“Que tipo de atendimento médico, psicológico, material é oferecido às vítimas? Na maioria dos casos, nenhum. Faz 40 anos que a ONU determinou que todos os países devem ter uma política pública estabelecida de acolhimento para vítimas de crimes violentos. No Brasil isso ainda não existe”, afirma Celeste.
O Estatuto da Vítima foi aprovado na Câmara dos Deputados no final do ano passado, e agora aguarda apreciação no Senado.
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