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"Meu nome é Ruy Ferraz Fontes. Desde 2002, fui encarregado de fazer investigações relacionadas com o crime organizado e, especificamente, com relação ao PCC. Eu não tenho... eu tenho proteção de quê? Eu moro sozinho aqui, eu vivo sozinho na Praia Grande, que é o meio deles. Hoje, eu não tenho estrutura nenhuma, não tenho estrutura nenhuma…”. O depoimento, concedido a um podcast ainda inédito da rádio CBN em conjunto com o jornal O Globo, revelado nesta semana, parece agora premonitório de algo que era apenas questão de tempo para acontecer.
O assassinato do ex-delegado-geral de São Paulo Ruy Ferraz Fontes — fuzilado por bandidos fortemente armados após uma perseguição de carro na última segunda-feira (15), na Praia Grande (SP), sem escolta ou carro blindado —, expôs uma situação que impõe solução imediata por parte dos poderes Legislativo e Executivo nos âmbitos estadual e federal: a falta de previsão legal de qualquer tipo de proteção para agentes da lei aposentados que enfrentaram o crime organizado ao longo de suas carreiras e, em decorrência dessa atividade, receberam ameaças e foram marcados para morrer pelos bandidos que ajudaram a prender e condenar.
Mesmo nestes casos, não há previsão de carros blindados, escolta ou qualquer tipo de proteção. Ao se aposentar, a maioria deles sequer possui direito de manter o armamento funcional que portava durante a época de serviço. Na melhor das hipóteses, situações específicas são avaliadas pelo Poder Judiciário e pelos governos estaduais e federal, que decidem de maneira excepcional por manter algum nível de proteção ao servidor ameaçado fora da ativa.
No caso de ex-presidentes da República e ex-ministros do STF, a previsão legal existe. Para ex-governadores, a regra varia em cada estado.
Segundo a Polícia Civil de São Paulo, delegados-gerais contam com seguranças para desempenhar suas funções. Após a aposentadoria, no entanto, a proteção não é automática.
Existe uma regra que prevê que ex-delegados-gerais podem solicitar escolta caso se sintam em risco, mas a solicitação precisa ser feita pelo próprio interessado. No caso de Ruy Fontes, não houve esse pedido, de acordo com a Polícia Civil. Em nota enviada à Gazeta do Povo, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) de São Paulo afirma que “após o cargo, ex-delegados podem solicitar a escolta, mas tal solicitação não foi formulada.”
"A SSP lamenta com profundo pesar o ocorrido e ressalta que as policiais Civil e Militar estão empenhadas em identificar os autores e proporcionar uma rápida resposta ao crime”, afirma o comunicado à reportagem.
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O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), afirmou que é necessária uma mudança para garantir a proteção dos agentes públicos ameaçados, de forma automática depois da aposentadoria. “A gente tem que pensar, sim, na proteção dessas autoridades, dessas famílias. São pessoas que dedicaram uma vida ao combate do crime organizado e que merecem esse amparo do Estado, porque a gente sabe que a memória não vai embora”, afirmou o governador nesta terça-feira (16), durante evento no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.
Ruy Fontes era secretário de Administração na prefeitura de Praia Grande, no litoral de São Paulo. Em nota, a prefeitura da cidade afirma que ele dedicou-se exclusivamente às atribuições administrativas. "Sem relatar preocupações relacionadas à sua segurança pessoal ou mencionar fatos de sua atividade anterior como delegado-geral", afirma a administração municipal.
A execução chama atenção porque o delegado era ameaçado de morte pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) desde o início dos anos 2000. De acordo com informações do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), desde 2002 a cúpula do crime passou a ameaçar investigadores, promotores, juízes e autoridades em geral. Dentre elas, o delegado assassinado nesta semana.
Para o ex-secretário da Segurança Pública do Paraná e delegado da Polícia Federal (PF) Wagner Mesquita, esse é um problema histórico que aumenta na medida em que também cresce o poder das facções criminosas. “Eu nunca ouvi falar de policial protegido na inatividade… no máximo já vi deixarem o agente manter acautelado um colete balístico”, afirma Mesquita. “Na própria PF, é medida recente permitir o armamento oficial para policiais aposentados.”
O ex-secretário da Segurança Pública afirma que seria importante tornar padrão em todas as forças policiais e no Judiciário a permissão para manter o armamento funcional e seu porte mesmo após a aposentadoria. “Além da arma e de coletes, no mínimo poderia ser mantido um carro blindado para agentes da lei que tem ou tiveram esse problema. Centenas são apreendidos do crime organizado todos os anos e poderiam ser revertidos para proteger estes policiais, juízes e afins”, afirma Mesquita.
“Em última instância, em casos mais graves mantém-se a escolta armada, por que não? Me parece ser o mínimo razoável para quem arriscou toda uma vida para defender a sociedade”, acrescenta ele.
Enxurrada de projetos
Na Câmara dos Deputados, tramita desde o ano passado o PL 2920/2024, de autoria do deputado federal Delegado Palumbo (MDB-SP), que prevê "a utilização de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública na segurança e na proteção de magistrados, membros do Ministério Público, Delegados de Polícia, integrantes da segurança pública, oficiais de justiça, ainda que aposentados, reformados ou na reserva remunerada, quando ameaçados por organizações criminosas”.
O projeto tramita nas comissões específicas e não possui prazo para ser votado no plenário. À TV Globo, o secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, afirmou na terça-feira (16) que deve apresentar um projeto de lei ao presidente da República para aumentar a segurança de pessoas envolvidas no combate ao crime organizado.
"É um PL que trabalha modificações na lei das organizações criminosas. Ele prevê a proteção a agentes públicos, testemunhas e até mesmo para os agentes públicos, especificamente, até mesmo após a aposentadoria”, declarou ele.
O deputado estadual Paulo Fiorilo (PT-SP) protocolou projeto de lei na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para a criação do "Programa de Proteção Continuada a Agentes de Segurança Pública no Estado de São Paulo". O texto prevê diretrizes de proteção aos agentes de segurança pública, da ativa ou aposentados, assim como de seus familiares, quando em situação de risco. Além dele, os deputados estaduais Delegado Olim (Progressistas-SP)) e Altair Moraes (Republicanos-SP) protocolaram na Alesp projetos de lei com teor semelhante logo após o assassinato de Ruy Fontes.
"Perplexidade e indignação", declara sindicato dos delegados sobre o crime
Pressionado pela base policial do estado e politicamente por uma resposta rápida ao crime afrontoso, o secretário da Segurança Pública do estado de São Paulo, Guilherme Derrite (Progressistas-SP), recusou a ajuda oferecida pelo diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, para elucidar o caso. "Agradecemos o apoio da Polícia Federal, mas no momento todo o aparato do estado aqui é 100% capaz de dar a pronta-resposta necessária", disse Derrite durante o velório do ex delegado-geral, na Alesp, também na terça-feira.
“Nós temos diretamente envolvidos o DHPP [Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa] e o Deic [Departamento Estadual de Investigações Criminais]. Os policiais estão nas ruas desde ontem, quando soubemos do assassinato. Eles não pararam de trabalhar e não vão parar de trabalhar”, afirmou Derrite.
Segundo o secretário, dois suspeitos de envolvimento no assassinato de Fontes foram identificados pela polícia. Um deles, segundo o secretário, possui antecedentes criminais por roubo e tráfico de drogas. A prisão dos dois foi pedida à Justiça.
Em nota, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) manifestou "indiscutível perplexidade e indignação” com o assassinato do delegado, e responsabilizou o governo do estado de São Paulo. "A ação que resultou na execução de Ruy Ferraz Fontes, o qual, há poucos anos, ocupou o cargo de comando máximo da Polícia Civil bandeirante, escancara a forma como o governo do estado de São Paulo cuida de seus policiais mais dedicados”, afirma o comunicado enviado à reportagem da Gazeta do Povo, que exige maior valorização da carreira e proteção aos policiais civis ameaçados.
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