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O governo de São Paulo criou um grupo de trabalho para discutir a regulamentação da lei orgânica da Polícia Civil, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em novembro de 2023 pela Lei federal 14.735/2023. A corporação é regida pela Lei estadual 207/1979 e que agora precisa de adequações às diretrizes federais.
Segundo apuração da Gazeta do Povo, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo pretende aproveitar a oportunidade para modificar regras que desagradam a atual gestão, como o modelo de promoções e a aposentadoria de delegados. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) enviará, nas próximas semanas, um projeto de lei complementar (PLC) à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para alinhar a legislação estadual à federal. A matéria é tratada como prioridade pelo governo paulista.
Entre as mudanças previstas estão:
- unificação da carreira de escrivães
- concessão de porte de arma para policiais civis aposentados
- oficialização do cargo de investigador.
Além dessas adequações, o governo pretende incluir na proposta alterações que não estão previstas na legislação federal, como antecipar a aposentadoria compulsória dos delegados, que está em 75 anos, seguindo o modelo do Judiciário, e a adoção do critério de tempo de serviço para promoções, como ocorre na Polícia Militar. As promoções na Polícia Civil são decididas por superiores, o que abre margem para interferências políticas.
Ainda sem texto finalizado, a proposta enfrenta resistência de parte dos delegados de carreira, que nos bastidores se opõem às mudanças possíveis. Para ser aprovado na Alesp, o PLC precisará de maioria simples, ou seja, 48 votos — número inferior aos 65 deputados da base governista.
Outras alterações em estudo envolvem escalas de trabalho e benefícios para policiais civis, que ainda estão em definição pela Secretaria da Segurança Pública. Após a conclusão do texto, o projeto será enviado à Casa Civil antes de chegar à Alesp.
Alto escalão da Polícia Civil será impactado pelas mudanças
Enquanto aguardam o texto da proposta, sindicatos e associações da categoria temem mudanças estruturais na corporação. Desde a criação da Lei Orgânica da Polícia Civil em 1979, a única alteração significativa ocorreu em 2016, quando a gestão João Doria aprovou a Lei 1.282/2016, que alterava a carteira funcional dos policiais.
As mudanças propostas enfrentam resistência no alto escalão da Polícia Civil, que será diretamente impactado. A principal alteração prevê a adoção do critério de tempo de serviço para promoções, retirando dos delegados o poder de decidir quem avança na carreira.
Outra alteração busca eliminar a brecha que permite aos delegados se aposentarem aos 75 anos, com base na PEC da Bengala, por serem uma polícia investigativa com poderes jurídicos. O governo quer reduzir essa idade para facilitar a renovação dos quadros da corporação e evitar a disparidade com a Polícia Militar, na qual coronéis costumam se aposentar aos 55 anos, após 35 anos de serviço.
Derrite enfrenta resistência dentro da Polícia Civil
O secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, tem encontrado dificuldades no diálogo com a Polícia Civil, que resiste a ter um ex-policial militar no comando da pasta. Para articular a proposta de mudança na lei orgânica da corporação, ele conta com o secretário adjunto da pasta, Nico Gonçalves, delegado desde 1979.
Desde que assumiu o cargo, tradicionalmente ocupado por membros do Ministério Público (MP-SP) ou comandantes do Exército, Derrite enfrenta acusações de favorecer a Polícia Militar em detrimento da Polícia Civil. Representantes da categoria reclamam de salários inferiores aos da PM e de um déficit de efetivo proporcionalmente maior que o da corporação-irmã.
Outro ponto de atrito entre as forças de segurança é a formulação do Termo Circunstanciado (TC) pela Polícia Militar. O registro de crimes de menor potencial ofensivo — que gera o TC — é atribuição da Polícia Civil. O grupo de trabalho criado para estudar a mudança concluiu os trabalhos em setembro do ano passado. Temendo repercussão negativa, o governo ainda não divulgou a decisão oficial sobre a proposta.
Segundo apuração da Gazeta do Povo, delegados insatisfeitos com a gestão devem convocar o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Arthur Dian, para uma reunião assim que o projeto de alteração da lei orgânica for enviado à Alesp. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública confirmou que haverá mudanças na corporação.
“O grupo de trabalho realizou a primeira reunião na última semana, quando foi deliberada a participação das entidades representativas para contribuir com as discussões e propostas para a lei orgânica da Polícia Civil do estado de SP”, informou a pasta.
Grupo de trabalho para regulamentação da lei orgânica gera atrito
A criação do grupo de trabalho para discutir a regulamentação da Polícia Civil em São Paulo exigiu duas publicações no Diário Oficial. Inicialmente, a coordenação do grupo ficou com o chefe de gabinete do secretário da Segurança Pública, Maurício Ferreira, coronel da reserva da PM e braço direito de Derrite na pasta.
A nomeação gerou forte repercussão na Polícia Civil, com críticas em grupos internos questionando a escolha de um coronel para coordenar a regulamentação da corporação. Diante da insatisfação, o governo refez a nomeação em 28 de janeiro, designando então o secretário-chefe da Casa Civil, Fraide Sales, para a função.
A formação do grupo de trabalho para regulamentar a lei orgânica da Polícia Civil inclui:
- Um assessor indicado pela Casa Civil
- Quatro policiais civis
- O secretário executivo de Gestão e Governo
- O chefe de gabinete da Secretaria da Segurança Pública.
Sindicato da Polícia Civil não quer alterações no regime de pagamento
A presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo (Sindpesp), Jacqueline Valadares, afirmou à Gazeta do Povo ser favorável a mudanças na lei orgânica da corporação. “A princípio, vemos com bons olhos, porque nossa lei orgânica é muito antiga. A legislação federal precisa ser regulamentada em âmbito estadual, especialmente em questões orçamentárias”, diz.
Valadares manifesta receio quanto a uma possível mudança no regime de remuneração. “O governo sinalizou interesse em adotar o subsídio como modelo de pagamento, e isso precisa ser discutido com a categoria”, opina. A sindicalista defende maior renovação nos cargos de comando da corporação.
“Hoje, não há rotatividade, o que dificulta a oxigenação da instituição. A mudança na aposentadoria compulsória pode ajudar a renovar a liderança. O sindicato já apresentou propostas sobre isso à Secretaria da Segurança Pública”, afirma.
Segundo Valadares, uma pesquisa realizada pelo sindicato revelou "ampla insatisfação" com o atual sistema de progressão de carreira. “Perguntamos a mais de 700 delegados quais eram suas expectativas em relação ao governo estadual. Mais de 90% criticaram o modelo vigente, alegando que ele é antiquado e favorece indicações políticas, comprometendo a imparcialidade na promoção de cargos”.
Oposição e base aliada concordam sobre necessidade de mudanças na Polícia Civil
A Gazeta do Povo ouviu dois policiais civis que são deputados estaduais na Alesp: Paulo Reis (PT), da oposição, e Danilo Campetti (Republicanos), da base governista. Reis, que é investigador da Polícia Civil, explica por que os delegados permanecem na ativa até os 75 anos.
“Eles não querem se aposentar porque perdem um terço do salário. Deixam de receber o abono-permanência, a gratificação por acúmulo de titularidade, o auxílio-refeição e o adicional de insalubridade. O ideal é que o governo respeite a paridade, garantindo na aposentadoria o mesmo salário da ativa”, defende o parlamentar.
Para o petista, a palavra final sobre a lei orgânica será da Assembleia Legislativa. “Ainda não há um texto do projeto, então qualquer discussão é prematura. No entanto, o parlamento terá a última palavra e poderá modificar a proposta por meio de emendas o projeto”.
Já Campetti defende a antecipação da aposentadoria dos delegados. “Não há como equiparar as regras dos delegados às dos coronéis da PM, pois são regimes distintos. Mas é preciso um ajuste para evitar que os delegados fiquem na ativa até os 75 anos. No entanto, a aposentadoria também não pode ser precoce, é preciso equilíbrio”, pondera.
O deputado governista também apoia mudanças no modelo de promoções. “A alteração é positiva, pois já funciona assim na Polícia Federal. No sistema atual, há margem para interferência política, permitindo que policiais mais próximos dos delegados ascendam mais rapidamente na carreira”, avalia.
Sobre a resistência que o Executivo poderá enfrentar para aprovar o projeto, Campetti adota cautela. “Precisamos esperar o texto. Esta é a gestão que mais contratou policiais civis na história. Ter um policial à frente da SSP já é um grande avanço, sem desmerecer o MP ou o Exército. Pela primeira vez, um policial chefia os policiais”, conclui.











