
Entrevista com Glauco Reggiani Mello, oftalmologista.
Uma pesquisa inédita realizada por um médico paranaense pode ajudar a combater uma doença grave da visão. O oftalmologista Glauco Reggiani Mello apresentou há dois meses uma dissertação de mestrado sobre o uso de um medicamento que inibe a vascularização da córnea. O princípio ativo é utilizado originalmente em pacientes com câncer de intestino, mas Mello descobriu que o benefício poderia ser ampliado às córneas. O teste foi feito em coelhos e apresentou bons resultados. O surgimento de vasos nessa região do olho pode provocar a cegueira e atinge mais de 1 milhão de brasileiros. O tratamento mais utilizado hoje são os corticoides, que têm graves efeitos colaterais e podem ocasionar glaucoma e catarata. No próximo ano, Mello fará um estágio em um hospital norte-americano. A expectativa é que em um ano o medicamento comece a ser testado em humanos. O estudo tem o apoio da Faculdade Evangélica do Paraná e do Hospital de Olhos do Paraná e foi feito sob a orientação do professor Hamilton Moreira.
Por que a vascularização da córnea é um problema tão grave?
A córnea é a estrutura mais superficial do olho e é avascular, ou seja, não tem vasos. Ela é um meio transparente para a luz passar, como a lente de uma máquina fotográfica. Há várias doenças que estimulam a formação de vasos. Isso pode atrapalhar a visão, obstruir o eixo e trazer problemas principalmente para quem fez transplante. A formação desses vasos pode ocasionar uma rejeição. É como se houvesse uma obstrução em cima de uma lente de câmara fotográfica. O surgimento dessas pequenas veias é causado por traumas, como, por exemplo, queimaduras que diminuem a oxigenação e proporcionam o aparecimento desses problemas , inflamações e uso indiscriminado de lentes de contatos. Há uma grande incidência dessa doença no pós-operatório de transplantes de córneas.
Qual o tratamento tradicional utilizado hoje?
Já foram tentadas várias alternativas, mas a mais comum é o uso de corticoides. Eles têm uma ação apenas parcial e causam muitos efeitos colaterais. Prejudicam a cicatrização e podem causar glaucoma e catarata. Então, por isso sempre tentamos pesquisar medicamentos que não sejam negativos para o corpo. O medicamento que estudamos tem essa característica. Ainda que em alguns pacientes seja necessário o uso de corticoides, as doses serão menores e os efeitos reversos também.
Como surgiu a associação entre um medicamento para combater o câncer e a vascularização da córnea?
Há um medicamento chamado Bevacizumabe, que inibe a formação de vasos. Foi aprovado em 2004 nos Estados Unidos para o uso em câncer de intestino, com o princípio de coibir o surgimento de novos vasos, evitando assim que o tumor cresça. Pelo mecanismo de ação da droga, pesquisadores começaram a estudar o medicamento em outras enfermidades provocados pelo mesmo problema. Há pesquisas em doenças da retina, como a retinopatia diabética, relacionada ao diabete, e degeneração macular, relacionada à idade. Agora iniciamos a pesquisa com as córneas.
Qual o ineditismo da pesquisa?
Está justamente em pesquisar a córnea. Até então havia muito pouca literatura sobre esse assunto. No Brasil não há nenhum estudo do gênero. No mundo há poucos artigos em revistas científicas. Apesar do Bevacizumabe inibir a formação de vasos, cientistas ainda não o haviam relacionado à vascularização da córnea. No início da pesquisa, busquei a literatura, vi os estudos sobre a retina e fiz um link com o que via no ambulatório. Sou especialista em córneas, e infelizmente com alguns pacientes ficávamos de mãos atadas. Não havia muito o que fazer. Daí surgiu meu interesse em buscar uma alternativa.
Como foi o processo de pesquisa?
Utilizamos 40 coelhos. Escolhemos esses animais porque são o melhor modelo de avaliação. O rato, por exemplo, tem o olho muito pequeno. Induzimos a cauterização, uma queimadura programada, em todos eles. Isso estimulava a formação dos vasos sanguíneos. É um modelo usado em vários estudos. Em metade aplicamos o Bevacizumabe e na outra metade apenas soro fisiológico. Os coelhos tratados com o princípio ativo tiveram uma resposta muito melhor no combate à formação de vasos e sem afetar a cicatrização, o que é muito importante. A queimadura nos olhos foi feita sempre do mesmo tamanho em todos os coelhos. Para avaliar a eficácia, criamos uma escala de 0 a 4 em relação à quantidade de vasos formados. Até 25% de vasos era grau 1; 50% era grau 2; 75% era grau 3, e toda a área queimada, grau 4. A média do grupo que não foi tratado teve grau 3 e o que foi tratado teve grau 1.
Isso pode ser uma esperança para quem sofre com a vascularização?
Sim. Pode representar uma alternativa de tratamento para todas as doenças que se desenvolvem a partir do surgimento de vasos nas córneas, principalmente quem passou por um transplante ou teve queimaduras. Os vasos pioram o prognóstico de outras enfermidades na região. Por exemplo, quem tem queimadura e teve vasos por toda a córnea dificilmente terá sucesso em um transplante. Com o Bevacizumabe a perspectiva é maior.
Quais serão os próximos passos?
Ainda precisamos fazer uma avaliação a longo prazo. São dois quesitos que precisam ser analisados antes da pesquisa com humanos: segurança e duração do efeito. Neste estudo, utilizamos apenas uma dose de Bevacizumabe. Não sabemos ainda qual será a duração. Pode ser que no futuro descubramos que será necessário mais injeções para inibir o crescimento. Precisamos de maiores prazos para essa avaliação e também para ver se há necessidade de se utilizar corticoides conjuntamente. Hoje não há nenhum país que utilize essa alternativa de tratamento. Ainda há muito o que avaliar, mas, se continuarmos nesse ritmo, acredito que em um ano já poderemos fazer a avaliação em humanos. Em 2010 vou fazer um estágio de um ano em um hospital renomado dos Estados Unidos, o Cleveland Clinic. Vamos ver como as pesquisas seguem lá.



