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O pecado mora ao lado. O perigo também. Enquanto as estatísticas apontam índices bem-apurados de mortes no trânsito e por armas de fogo, a violência doméstica desce pelo ralo da cozinha ou se esconde debaixo da cama. Não se sabe ao certo o tamanho do estrago quando o assunto é briga de parente e de vizinhos próximos. De acordo com cruzamento de dados feito pela reportagem nos três maiores hospitais de Curitiba, o do Trabalhador, Evangélico e Cajuru, cerca de 20 pessoas por dia chegam aos prontos-socorros com ferimentos "provavelmente" causados por "inimigos íntimos". O número de casos, contudo, deve ser muito maior, já que as vítimas tendem a procurar ajuda médica apenas em casos extremos, quando não dá mais para estancar o sangue.

Há motivos de sobra para duvidar das estatísticas de agressão. Reza o senso comum que é muito raro alguém contar num hospital que apanhou em casa, ou do vizinho. Alardear que foi roubado e ferido na rua soa como dever cívico, uma denúncia indignada. Já dizer que sofreu espancamento de alguém próximo é um vexame que a maioria prefere não passar. O silêncio é motivado pelos laços de sangue, de afeto e pelo medo. Afinal, as vítimas sabem que uma hora ou outra vão estar dividindo o mesmo teto com o agressor.

Por essas e outras, mensurar delitos ocorridos entre quadro paredes é uma luta quase sem glória. Os números mentem. Quando não, refletem uma parte muito pequena da realidade – aquela que passa pelas delegacias e pelos hospitais. Para driblar essa contingência, muitos órgãos de segurança pública costumam fazer uma conta de multiplicar: para cada homicídio os policiais estimam haver cem agressões físicas praticadas no lar. Feito esse cálculo, dá para suar frio só de colocar a chave na fechadura. Outra saída é peregrinar pelos hospitais com muita disposição para matar a charada: "Que desculpas os pacientes costumam inventar para não contar o que realmente aconteceu?"

O banco de dados do Hospital Evangélico é perfeito para esse exercício. A ficha de entrada traz especificações como queda na residência (800 casos por ano), ferimentos domésticos (300 casos por ano), mas também "batida na cabeça" (120 casos por ano) ou "queda de objeto na cabeça" (200 casos por ano). "Certos tipos de acidentes são meio improváveis. Não podemos afirmar, mas esses ferimentos podem ter sido provocados", observa a médica Maria Casimira Fernandes, diretora do pronto-socorro do Evangélico.

Outras desculpas comuns são ter caído da escada, trombado num móvel ou escorregado na calçada. Profissionais do ramo dificilmente se deixam enganar por versões esfarrapadas, ainda que pouco possam fazer contra elas. "Ferimentos na cabeça, nos órgãos superiores e nos olhos geralmente são sinais de agressão física", explica a doutora Maria Casimira. "Acontece de o paciente dizer que caiu no banheiro, mas traz fratura no osso da face. Há uma disparidade. Mas é difícil abordar o adulto", comenta o ortopedista Jamil Soni, chefe do Setor de Órteses e Próteses do Instituto de Reabilitação do Erasto Gaertner. O setor atende 200 pacientes mês e cerca de 5% do total é de vítimas da violência. Soni calcula que cerca de 10% das agressões domésticas chegam a ser registradas. "Uma saída seria cruzar os dados dos hospitais com o dos órgãos de segurança", sugere.

No Hospital do Trabalhador (HT), de 71 mil atendimentos feitos em um ano (de junho de 2004 a maio de 2005), 4.500 correspondem a agressão, incluindo aí ferimentos com armas de fogo. É coisa de 6% do total e parece pouco. Engano. A briga corporal – aquela no muque, no tapa, chutes e afins – tem o maior índice na categoria agressão, com metade dos casos, destacando-se em meio aos cerca de 20 tipos de traumas que o HT registra em seu catálogo. A comparação ajuda a perceber que a pancadaria só não é menor do que quedas, torções, batidas em objetos – que são típicos acidentes suspeitos, principalmente quando não contemplam a terceira idade.

Relação difícil

A fragilidade dos dados sobre violência doméstica é uma pedra no sapato dos profissionais da saúde. Alguns reclamam estudos sociológicos sobre o agressor e lamentam o aproveitamento pouco inteligente do retrato da violência doméstica que passa todos os dias pelos prontos-socorros. "Quando alguém chega na emergência somos obrigados a tratar da doença. Acabamos sabendo muito pouco sobre o que aconteceu em casa", comenta o médico Vinícius Augusto Filipak, do corpo de gerentes do Hospital Cajuru. "É comum termos de lidar com gente que embebedou no final de semana e acaba chegando aqui ferindo ou ferido. O alcoolismo está na raiz de muitos desses problemas", comenta o diretor técnico do Hospital do Trabalhador, doutor Hermann Valentim Guimarães.

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