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Cultura

A casa alienada – e ao deus-dará

Até fevereiro de 1885, quem tinha de descer a Serra do Mar tinha três opções: as estradas da Graciosa, do Arraial e do Itupava. Num dos livros do historiador paranaense Romário Martins, conta-se que esta última foi indicada por uma anta a um caçador de Borda do Campo: depois de algum tempo de perseguição, o homem chegou a Porto de Cima, em Morretes, seguindo o caminho aberto pelo animal. Ainda que as condições técnicas fossem péssimas, o caminho era quase duas vezes mais curto que o da Graciosa.

Em 1885, a inauguração da ferrovia Paranaguá-Curitiba marcou uma nova etapa no desenvolvimento do Paraná – especialmente para a ligação entre o planalto e o litoral. A obra, iniciada em Paranaguá, em 1880, percorreu 110 quilômetros e chegou a Curitiba cinco anos depois. Durante sua construção, o caminho do Itupava era utilizado para levar comida e suprimentos aos operários da estrada. É exatamente no primeiro ponto de intersecção entre o caminho do Itupava e a ferrovia que foi construída a Casa do Ipiranga – um ponto histórico do estado.

Hoje, a casa e a maior parte das estações ao longo da ferrovia está entregue aos vândalos e à natureza. Em 1997, a linha foi concedida às empresas América Latina Logística (ALL) e Serra Express e os funcionários que cuidavam das casas foram demitidos. Começou a depredação. Depois de quase dez anos, plantas com mais de dois metros de altura ocupam os cômodos e as paredes que prevaleceram formam um grande livro de visitas para pichadores.

"Quando a Rede (Rede Ferroviária Federal S.A., RFFSA) abandonou o local, a depredação começou pelo que tinha de madeira nas casas. Retiraram as portas, depois os assoalhos, usados para fazer fogueira para o pessoal se aquecer. Depois começaram a atacar as janelas, as paredes. Lamento profundamente que isso tenha ocorrido, que nós tenhamos na população brasileira pessoas com esse espírito de destruição e depredação", diz o empresário Rubens Habitzreuter, autor do livro A Conquista da Serra do Mar, em que relata a história da construção da estrada de ferro Paranaguá–Curitiba.

Nem a padroeira dos ferroviários foi poupada do vandalismo. A estátua de Nossa Senhora do Cadeado, ironicamente, foi roubada várias vezes. O Santuário em homenagem à santa está situado num segundo ponto de encontro entre o Caminho do Itupava e a ferrovia e foi construído por causa das comemorações de 80 anos da estrada, em 5 de fevereiro de 1965.

"O estado das casas ao longo da ferrovia é uma tragédia. A história do Paraná passa por aquela ferrovia. A construção, na época, foi um marco da engenharia nacional. Depois da privatização, a ferrovia se tornou mais cara para os aventureiros e, como opção, eles começaram a utilizar o Caminho do Itupava. Algum tempo depois começaram os assaltos em Quatro Barras, no início da trilha", diz Henrique Schmidlin, curador do patrimônio natural da Secretaria Estadual de Cultura.

Um livro comemorativo do centenário da ferrovia, lançado pela RFFSA, em 1985, informa que a Casa do Ipiranga foi abrigo para Dom Pedro II e o presidente da então Província do Paraná, Carlos de Carvalho. Embora se saiba que ambos vistoriaram as obras da ferrovia, não há qualquer documento que indique a data da construção da casa.

Habitzreuter, por exemplo, acredita que a casa foi construída apenas na década de 30 e que Dom Pedro II e Carlos de Carvalho jamais chegaram a conhecê-la. "À época da construção de ferrovia, havia escassez de recursos e a ordem era não gastar. As estações foram construídas de madeira. Só na década de 30 é que foram construídas novas estações, de alvenaria e estilo colonial. A Casa do Ipiranga tinha esse mesmo estilo colonial, e não faz muito sentido que ela tenha sido a única casa de alvenaria quando estavam construindo a ferrovia. Além disso, as primeiras fotos da Casa, datadas de 1934, mostram que ela estava em ótimo estado", diz. Ele também argumenta que nas datas da visita de Dom Pedro II, em 1880, e de Carlos de Carvalho, em 1882, a ferrovia ainda estava longe de atingir o ponto onde hoje estão os restos da Casa do Ipiranga. "A ferrovia só chegou naquela altura em meados de 1884, pouco antes de chegar a Curitiba", afirma.

Ninguém cuida

As empresas ALL e Serra Express informaram que a manutenção da Casa do Ipiranga não faz parte do contrato das permissionárias. A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com a RFFSA para saber sobre a situação do patrimônio, e recebeu a seguinte resposta, por email: "A Casa do Ipiranga não pertence a RFFSA. Ela foi alienada em 2001."

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