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História

A guerra de monges que redesenhou o PR

Quando a guerreira vidente Maria Rosa saiu montada em seu cavalo branco anunciando aos quatro ventos que recebera o espírito de José Maria para uma conversa, o povo não teve dúvidas de que seria ela a nova líder a implantar a Monarquia Celestial naqueles confins do Brasil. O terceiro dos monges messiânicos morrera semanas antes em confronto com as tropas do governo, dando início a um dos maiores conflitos armados da história do país. Mas quatro anos depois, o sonho acabaria no rastro de sangue dos 10 mil mortos nos redutos incrustrados na divisa do Paraná e Santa Catarina. Esta é a história da Guerra do Contestado, findada num mês de agosto, há 90 anos. Uma história feita de fé, de fanatismo, uma estrada de ferro e mortes, muitas mortes.

Corria o mês de outubro de 1912 quando as tropas lideradas pelo coronel João Gualberto avançaram sobre os seguidores de José Maria, na localidade de Irani, à época sob jurisdição de Palmas (PR). Seria uma resposta ao que o governo do Paraná equivocadamente interpretava como uma invasão de Santa Catarina, estado com o qual tinha questões jurídicas pendentes por causa das divisas de seu território. Dá-se início então à Guerra do Contestado, que ao cabo de quatro anos traria conseqüências desastrosas ao Paraná. O estado perderia uma significativa porção de seu território para Santa Catarina no acordo de limites do pós-guerra, em 1917. O mapa do Paraná seria redesenhado, desta vez uns 28 mil quilômetros quadrados menor.

Os antecedentes históricos revelam uma região pouco habitada, com vilarejos esparsos na rota dos tropeiros que iam do Rio Grande do Sul para São Paulo. Tudo mudaria com a estrada de ferro que ligaria os dois estados. A concessão foi dada pelo governo federal para a Brazil Railway Company, empresa norte-americana de Percival Farquhar. A Lumber, madeireira coligada, ganhou o direito de desmatar 15 quilômetros de cada margem da estrada de ferro. "Foi o maior crime ambiental de que se tem notícia no país", diz o historiador autodidata Vicente Telles, cujo avô paterno estava do lado dos opressores e o avô materno, do lado dos oprimidos. Acabada a obra, os operários trazidos de todas as partes, a maioria do Nordeste, ficaram à revelia.

Estes operários juntaram-se aos descontentes expulsos das terras por onde passavam os trilhos do trem. Nessa época, campeava por toda a região a fama do monge José Maria, trazido à luz na esteira da popularidade de outros dois monges que o antecederam. Para o professor de História Joaquim Osório Ribas, de União da Vitória (PR), o primeiro foi um santo, o segundo político e o terceiro, um guerreiro. As pregações desse novo messias tornaram-se o rumo a ser seguido. Ele surgiu em 1912, tido como ressurreição do monge João Maria, seu antecessor desaparecido em 1908. As mesmas sandálias de couro e as roupas simples fizeram renascer o mito. O dom da oratória e o conhecimento de ervas medicinais fariam o resto.

Os operários e os camponeses expulsos das terras (os caboclos) se juntaram a ele em comunidades. Sem conseguir as terras reivindicadas, rebelaram-se contra a recém-formada República brasileira. Juntaram-se à causa coronéis manda-chuvas da região e fazendeiros que perderam terras para o grupo de Farquhar. Cada povoado seria como uma Monarquia Celeste, com ordem própria, igual ao que Antônio Conselheiro fizera pouco antes em Canudos. A polícia identifica José Maria como Miguel Lucena de Boaventura, um soldado desertor condenado por estupro. Há quem conteste. "Criaram mentiras contra este mártir", diz Telles. José Maria morre no primeiro combate, em Irani, juntamente com João Gualberto. Cada qual vira herói de seu povo.

A experiência militar ajudou o monge a coordenar a resistência armada, mas o povo tinha outras razões para cultuá-lo. Ele anunciava um lugar no paraíso, cercado de virgens, a quem morresse em combate, levando muitos a se entregar à luta de peito aberto contra os fuzis inimigos. Fluente nas letras, difundiu sua monarquia celeste, criou uma guarda de honra formada por 24 cavaleiros, os Doze Pares de França, em alusão à cavalaria de Carlos Magno na Idade Média. Tais atitudes fizeram surgir relatos de que José Maria exigia dormir cada noite com sete virgens. Os sertanejos, inocentes, ofereciam suas filhas. Para Telles, no entanto, isso não passa de um revisionismo furado da história.

Mesmo com a perda do líder, a vitória em Irani enche os revoltosos de entusiasmo e de armas do inimigo. Os caboclos passam ao comando de Eusébio Ferreira dos Santos. Mas é sua filha, Maria Rosa, a guerreira vidente proclamada Joana D’Arc do sertão, que vira a líder espiritual e militar dos resistentes, que já somavam seis mil. Comandava os contestadores montada num cavalo branco, vestida de branco, com flores no cabelo e no fuzil. Passado um tempo, Maria Rosa perdeu parte do seu crédito entre os comandados sob a suspeita de ter tido um envolvimento amoroso com o capitão Matos Costa.

O militar não queria abrir fogo contra os sertanejos por achar que tinham alguma razão. Disfarçou-se de sertanejo e foi ter com a líder do grupo para tentar levar o conflito a bom termo. O disfarce foi descoberto e acreditou-se que Maria Rosa tivesse perdido a virgindade. Por força das pregações dos monges, acreditavam que o espírito de Deus só habitava os puros. Ela perdeu a virgindade e parte de sua força como líder. Estavam nessa época em Caraguatá, perto de Fraiburgo (SC), após fugirem de Taquaruçu, em Curitibanos, onde 700 soldados do Paraná, Santa Catarina e do governo federal, armados com peças de artilharia e metralhadoras, incendiaram o acampamento.

Em nova investida, as tropas foram derrotadas em Caraguatá. A notícia corre o sertão e mais gente se engaja ao movimento. Passam a usar técnicas de guerrilha e deflagram o que chamam de guerra santa, com saques e invasões de terras de coronéis. Depois de várias investidas frustradas, entrou em cena o personagem que poria fim ao conflito, dois anos depois. Nomeado em setembro de 1914 para comandar a operação, o general Setembrino de Carvalho dispunha de sete mil homens. Cercou os revoltosos por todos os lados e deixou a fome e o tifo fazerem o resto. Demorou, mas funcionou. A guerra terminaria em agosto de 1916, com a captura de Deodato Manuel Ramos, o Adeodato, último líder da resistência. Maria Rosa havia morrido um ano antes em combate às margens do Rio Caçador.

A Guerra do Contestado teve dimensões maiores do que a Guerra de Canudos, ocorrida uma década antes no interior da Bahia. No auge do conflito foram empregados sete mil militares do Exército e das forças de segurança do Paraná e de Santa Catarina, além de mil civis contratados. Entre os caboclos, ou jagunços, foram cerca de 10 mil combatentes envolvidos. As baixas nos efetivos militares ficou em torno de mil, entre mortos, feridos e desertores. Do lado oposto, foram oito mil mortos, feridos e desaparecidos.

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