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O Brasil é um país onde a concentração de terras é histórica, iniciada com o sistema colonial de capitanias hereditárias e com a concessão de sesmarias, que tinham como função a produção de gêneros agrícolas para render tributos à coroa portuguesa. Esse modelo concentrador, agravado pelo êxodo rural a partir dos anos 60, levou grande parcela da população a enfrentar a pobreza. No dia 17 de abril é celebrado o Dia Internacional de Luta pela Terra, infelizmente pouco comemorado no Brasil, que está entre os seis países mais injustos do mundo, se considerada sua distribuição de renda. Diante de tantas desigualdades, quem realmente tem direito à terra neste país? A Constituição de 1988 reconhece aos remanescentes dos antigos quilombos o direito à propriedade definitiva das terras que ocupam. Cabe ao Estado a emissão da documentação legal dos territórios. Os povos indígenas também usufruem dessa legitimidade, mas é a União que tem o dever de garantir-lhes a demarcação de reservas. Nos anos 80, conflitos envolvendo posseiros, grileiros e índios transformaram a violência no campo num problema de extrema gravidade. Surgiu assim o Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que utiliza a estratégia de ocupação em áreas teoricamente improdutivas, a fim de forçar as autoridades governamentais a promover as desapropriações.

No Paraná, povos indígenas e trabalhadores sem-terra constituem a grande força de luta pela terra, onde muitos já conquistaram seus espaços. Das poucas comunidades quilombolas que existiam no estado, sobraram apenas alguns redutos com a integridade cultural ameaçada. Apesar das diferenças nos objetivos imediatos de índios e sem-terra, a questão política de exigir condições dignas de vida é a mesma. Ambos sofrem agora com a falta de perspectivas dentro das propriedades. Nos assentamentos do MST ainda é desenvolvida uma agricultura de baixa produtividade, carente de recursos técnicos e financeiros, o que denuncia a inadequação da política agrícola e as dificuldades do pequeno produtor em participar do competitivo mercado. Já os índios sofrem com a invasão de suas terras por madeireiros e fazendeiros, além da contaminação dos recursos naturais, os constantes conflitos dentro das aldeias e a degeneração causada por problemas de "homem branco", como o alcoolismo. O governo sabe das dificuldades e está disposto a mudar esse quadro. Mas erra em não tratar de maneira igualitária aqueles que têm um mesmo direito.

"Dirija com atenção. Indígena no acostamento". Os dizeres da placa de sinalização desbotada, em volta do mato que ameaça cobri-la por inteira, obriga a Expedição diminuir a marcha e redobrar atenção logo no início da PR-473, perto do município de Nova Laranjeiras. A rodovia atravessa a Reserva Indígena Rio das Cobras, a maior do Paraná com mais de 18 mil hectares, dividida entre caingangues e guaranis. O trecho por dentro da aldeia representa um grande perigo aos motoristas, pois os índios usam a estrada como vitrine para vender os artesanatos que produzem, como chapéus, balaios e cestas feitas de tiras de taquara. "Muita gente já foi atropelada aqui. Os índios vão para a cidade comprar cachaça, ficam bêbados e, quando tentam voltar para casa no fim do dia, resolvem dormir no meio do asfalto que ainda está quente", conta Thiago Canton Nicolau, estudante de veterinária que pegara carona no jipe até Quedas do Iguaçu. Pouco mais à frente, um grupo de crianças brinca de escorregar num barranco, todas inocentemente sem roupas, felizes e sujas de lama. Cena que retrataria a pureza da alma indígena, se não fosse a atitude grosseira da mãe de uma das crianças, que condenou aquela brincadeira batendo com força em sua filha e carregando-a pelos cabelos.

Perto dali, na cidade de Quedas do Iguaçu, foi inaugurado recentemente o assentamento Celso Furtado, um dos maiores do país com 25 mil hectares, onde vivem cerca de mil famílias. Além do Incra – órgão responsável pela reforma agrária – o MST conta com apoio de setores da Igreja Católica, partidos políticos, sindicatos, ONGs nacionais e estrangeiras. Com essas parcerias, estão sendo testadas experiências de cultivo orgânico e também alternativas compatíveis com a conservação de áreas verdes, criando um modelo de sustentabilidade no assentamento. Mas toda essa preocupação tem um preço para o governo. Segundo Celso Lisboa de Lacerda, superintendente do Incra na região, o custo total de cada família assentada chega a 100 mil reais. Multiplicado por todas, o investimento em Celso Furtado chega ao impressionante valor de 100 milhões de reais. Muito se comparado com os 150 mil reais anunciados numa grande placa dentro da reserva indígena de Marrecas, próximo ao município de Turvo, destinado a construção de 15 casas populares.

Por ser um assentamento recente, ainda faltam ruas, escolas, transporte e crédito para o pequeno agricultor em Celso Furtado. "Os recursos para boa parte da infra-estrutura do local já foram pré-aprovados pelo governo", garante Lacerda. Do outro lado do antigo latifúndio desapropriado, está um dos primeiros assentamentos do Paraná. Há exatamente dez anos, Rio Bonito do Iguaçu foi palco de uma grande invasão, quando cerca de 5 mil pessoas acamparam ao longo da rodovia que cortava a fazenda. A ação, conduzida na madrugada com os cuidados de uma operação militar, conseguiu chamar a atenção pelo porte, significado e ousadia. O Incra viu-se obrigado a promover a desapropriação, dando origem ao assentamento Ireno Alves dos Santos, com lotes para 1.500 famílias. Para o agricultor Antônio Guadain, todo esse processo durou sete anos de resistência, acampado debaixo de uma lona preta. Hoje, Guadain cuida com carinho e orgulho do seu pedaço de chão, plantando soja, feijão, mandioca e fumo. Guardada dentro da boa casa de material, ele exibe sua última conquista. "Comprei uma motocicleta para ir ao mercado e passear".

Apesar de todas as dificuldades que envolvem um grande projeto, os assentamentos provam que é possível a concretização do sonho daqueles que não possuem um lugar para morar e trabalhar. Falta uma democratização desse direito, não apenas para quem tem maior força política ou ideológica.

O crescimento assustador do MST e seu poder de mídia frente ao governo, através de atos muitas vezes condenáveis, faz com que ele aglutine outras classes de excluídos, mas que têm pouca ligação com o trabalho no campo. No "Celso Furtado", um rapaz com forte traço indígena, circulava pela vila atrás de um pedaço de terra para viver. Respeitando as diferenças de cada grupo, não se pode esquecer que, enquanto um integrante do MST leva anos acampado para ser reconhecido, os remanescentes quilombolas continuam resistindo há séculos numa terra que pertencia aos índios por natureza, há milhares de anos.

Site oficial – Roteiro, diário de bordo, mais fotografias e outras informações dessa aventura podem ser conferidas no www.coracaoparana.com.

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