Se hoje é tímido e indeciso, o carnaval de Curitiba certa vez já aprontou das suas. A cidade que ainda não sabe onde será o balancê deste ano carimbou a história do ziriguidum em 1978. E deixou Clara Nunes a ver navios. Pois sim, enquanto uma das maiores intérpretes de samba do país se limitava a esquentar a bateria da Portela, nos carnavais do Rio de Janeiro, uma curitibana desafiava o modus operandi momesco e puxava, pela primeira vez, um samba-enredo na avenida. Daqueles de fazer inveja a Jamelão.
A autora do feito é Mãe Orminda, negra de 70 anos bem vividos cuja personalidade só perde em força para sua voz. Nos anos 1970, o carnaval de Curitiba vivia um de seus rompantes. Fantasias caprichadas, escolas nos trinques e músicos de se tirar a cartola caso de Maé da Cuíca e Didi do Cavaco sustentavam os dias de folia, que às vezes invadiam a quarta-feira de cinzas. "Hoje o desfile é só no sábado. Nunca vi isso em lugar nenhum do mundo", reclama a matriarca do folguedo.
Nascida na Rua Petit Carneiro, nas barbas da Baixada por isso a flâmula rubro-negra na parede da sala , Orminda de Oliveira Rosa provou que levava jeito para a coisa nos programas de auditório das rádios Guairacá e PRB-2, na companhia de bambas como Nelson "Gorila" e do conjunto de Janguito do Rosário. Ia fugida. Sem o pai saber, cantava Se Acaso Você Chegasse, sucesso retumbante na voz de Elza Soares. Tinha 15 anos, a "Minda".
O nome da jovem chegou até os ouvidos do sobrinho, percussionista da escola de samba Dom Pedro II. Nos ensaios, procurava alguém que pudesse fazer a bateria entrar nos conformes. "Eles vão para um lado e eu para outro. Assim não dá", disseram à Mãe Orminda. Não foi preciso pedir duas vezes.
Beleza pura
A então escrivã de polícia se deu uma folga da delegacia e botou ordem na casa com, ironicamente, a música usada por Clara Nunes para esquentar os ânimos da escola azul e branca. "Portela/ eu nunca vi coisa mais bela/ na passarela. Foi beleza pura", confirma Orminda, afinada. O próximo passo, a transgressão histórica, seria colocá-la para puxar o samba da Dom Pedro II em plena Marechal Deodoro.
"Eu disse que tanto fazia. Já tinha meu grupo de samba [Partido Alto Compacto 8] e fui para a avenida de vez", diz a senhora. Há relatos de que Bola, o rei dos Reis Momos de Curitiba, comemorou o feito como se não houvesse amanhã. O jornalista e eterno carnavalesco Cláudio Ribeiro gritou "inacreditável" no microfone aberto. "Todo mundo levantou, o negócio pegou mesmo." Foi a única vez na história dos carnavais do planeta Terra em que a bateria tirou nota 13.
Fundadora do grupo Divina Luz, há 22 anos, Mãe Orminda foi por muito tempo a voz do Alice Bar, que fechou as portas. Hoje, o samba tem vez no fundo do quintal de casa. E no rádio da cozinha, onde um CD com músicas de Cartola a Zeca Pagodinho embalam seus dias de foliã aposentada.
Tese revela carnaval "tipo exportação"
Parece até teste de resistência, mas o carnaval de Curitiba persiste e cava seu lugar também na academia. A cientista social Caroline Glodes Blum decidiu estudar o fenômeno da folia na cidade que se faz de comportada. No ano passado, ela se saiu com uma tese de mestrado que leva o saboroso título de "Carnaval Curitibano: O Lugar da festa popular da cidade".
Os primeiros remedos de desfiles, descobriu Caroline, remetem a 1832. Eram pequenas quermesses, ainda nas beiras da cidade, que davam vida a coretos de outros tempos. As principais características do carnaval daqui, no entanto, permanecem. Seja na Marechal Deodoro, na João Negrão ou na Cândido de Abreu onde o carnaval "viu o começo de sua decadência" , o caráter familiar da festa é a sua alegoria principal. "Há sociabilidade intrínseca ao carnaval de Curitiba. Na avenida ou nas arquibancadas, você vê famílias inteiras", diz Caroline, que comemora ao perceber que a folia daqui não se tornou comercial apesar das pendengas para que saia na avenida ano a ano.
Outra circunstância descoberta com a ajuda de pesquisa e confetes foi o selo "tipo exportação" da festa curitibana. Com um quê de remorso, Caroline diz que profissionais qualificados às vezes vão da Avenida Cândido de Abreu diretamente para Paranaguá, Joaçaba (SC) e Rio de Janeiro, graças à combinação "muito talento" e "falta de espaço".
Aficcionada pelo ziriguidum, Caroline participa de diversos eventos ligados à folia na cidade e também mantém, "no ritmo que dá", o site Carnaval Curitibano (www.carnavalcuritibano.blogspot.com.br).



