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 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
  • O fruteiro manipula todas as frutas da loja. Segundo ele, apenas o toque permite saber a situação de cada fruta.
  • A Frutaria Canadá foi aberta em 1958. O
  • Na porta, um quadro, escrito a giz, diz ser
  • Consta que Nagib Kaiel foi jogador do Ferroviário, daí torcer hoje para o Paraná Clube. Na parede da quitanda a paixão pelo futebol é demonstrada com um cartaz da Seleção de 70
  • Seu Nagib estima comer dois quilos de frutas por dia.
  • A Frutaria Canadá mantém quase todo o mobiliário original, de 1958, com exceção de uma geladeira. O balcão é da marca Miguel Baduy
  • Frutaria da Rua Carlos de Carvalho, 15, é ponto de encontro da Velha Curitiba. Sentado num banquinho forrado com napa, Nagib atende seus visitantes. Nunca perde uma piada

"Nacib não, Na-gi-bê", corrige o comerciante Nagib Kaiel, 77 anos, ao ser chamado pelo nome do personagem de Jorge Amado. Mas faz sentido. O curitibano Nagib bem poderia ter saído de uma das páginas do escritor baiano, povoada de "turcos" impagáveis, assim como da pena de um Hemingway, de um Saramago. Qualidades para a eternidade literária não lhe faltam – tem humor, estilo e "tomou chuva", como se diz, sobre os homens que provaram da polpa da vida. Às boas.

Nagib vende frutas no Centro da capital há 66 anos, sendo 54 deles passados na Rua Carlos de Carvalho, endereço da minúscula Frutaria Canadá, a seu dispor. É o que há. O local se encontra tal e qual na inauguração, em 1958, "o ano que não deveria ter terminado". O charmoso balcão da fábrica "Miguel Baduy" está lá para confirmar: a quitanda nasceu junto com a bossa nova e o vestido tubinho. Viu o auge do governo JK e nossa primeira Copa do Mundo. Quer mais?

Num mundo perfeito, seria declarada Patrimônio Cultural e parada obrigatória da Linha Turismo, seguida de deguste de frutas e um dedo de prosa com o proprietário. Afinal, poucas coisas são tão universais nesta cidade quanto a lojinha de seu Nagib. A começar pelas plaquinhas que coloca nas mercadorias, escrito "nectarina Espanha", "laranja Uruguai" ou "maçã Hungria".

Impossível não lembrar de lugares semelhantes na França ou em Portugal, onde quitandas são naturalmente vizinhas de magazines de grife no comércio de rua. Além do mais, o estabelecimento tem ares de embaixada. Explico. O pai de Nagib, Ali Mustafá, era dono da frutaria A Deliciosa, na Ermelino de Leão, e não abandonou o ramo mesmo depois de ter "feito o laço". Ao contrário de seus patrícios, permaneceu fiel ao princípio de que a pessoa é para o que nasce. E ele nascera para os abacates e as pinhas.

Tudo indica que, ao abraçar um tipo de mercadoria tão sensível – que se magoa dos calores e de batidinhas bobas –, Mustafá tenha aprendido muito sobre as pessoas. Era um diplomata. Chamavam-no para arbitrar brigas na comunidade árabe, as quais resolvia com a delicadeza de quem encaixota uvas. Nagib saiu aos seus. Gosta das frutas e de gentes. "Minha vida inteira está nesse buraco", brinca, sobre o local que ainda hoje é entreposto dos libaneses. E de italianos.

Como a mãe de Nagib, Luiza, era de Mântua, o "turco parla bene". A fluência na língua de Dante, aliás, lhe garantiu dois encontros célebres, um com Francis Ford Coppola, outro com Anthony Quinn, ambos em passagem pela capital. O episódio Coppola é quase uma lenda, contada a cada vez que alguém vê, no meios das mangas Bourbon, o retrato de Nagib ao lado de um barbudo e pergunta quem é. "Ué, o Coppola..."

O fruteiro tinha lido numa revista que o diretor de O Poderoso Chefão gostava de bananas. E achou muita coincidência encontrá-lo no café, ao lado da quitanda. Pronto, separou um bom cacho e ofereceu ao visitante com um lustrosíssimo italiano, segunda língua do cineasta. Ficaram próximos, como se fossem da família de dom Corleone. Com Quinn foi um susto: o astro de Zorba, o grego entrou na quitanda feito um mortal qualquer que passa em direção à Praça Tiradentes. Nagib arriscou um sonoro piacere. Não havia por que temer. Estava diante de um monstro do cinema, é verdade, mas tinha treinado no longo tempo em que lidou com a freguesia mais graúda da casa – os figurões do Instituto Brasileiro do Café, ali em frente; os frequentadores da elegante Galeria Tijucas; os inquilinos do conjunto Brazilino de Moura, nosso "balança, mas não cai". Sem falar dos moradores do Centro, como os Picanço, família que compra no Nagib desde os tempos em que Adalgisa Colombo desfilava maiôs Catalina.

A troca da frutaria pela impessoalidade dos supermercados, claro, esbagaça sua alma. Mas nada de choro. "Preciso rir", avisa, embora assolado pela dor da morte de Wilma, sua mulher, há um ano. "Não fossem as frutas... Falo com elas", confidencia, explicando que é preciso apalpar uma a uma, todos os dias, para saber como estão. Quando vê tudo colorido e fresco, diz para si "eis o paraíso". E decide continuar só mais um pouquinho. É ali, afinal, que os amigos param para conversar e filar bananas. As mesmas bananas que fizeram Francis Ford Coppola e Anthony Quinn, "era uma vez", gostarem tanto de Curitiba.

Nagib Kaiel

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