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Desimond – em Pinhais, à espera de sua Elisabeth e dos filhos | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
Desimond – em Pinhais, à espera de sua Elisabeth e dos filhos| Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo

Haiti é aqui

Fragmentos de um país em Pinhais e no Butiatuvinha

• Repúblicas

Uma casa haitiana, com certeza, é habitada por até uma dezena de pessoas, todas debaixo de regras – camas sempre arrumadas, turma da cozinha a postos e rateamento das despesas. Há necessidade de ser aceito pelos vizinhos, daí a observação do silêncio e dos modos. Em Pinhais, na Rua Alzira Rodrigues da Silva, duas casas geminadas abrigam novos paranaenses como Exumo, Ebelson, Damisson, Edmont, Altidor e Demostherne – este um líder da pequena comunidade. Metade dos moradores está sem emprego e sai todo dia atrás de vagas. Para quem não fala português, as oportunidades são pequenas. A família sabe pouco do que se passa aqui. Uma ligação de cinco minutos para o Haiti custa R$ 13 – proibitivo para os recém-chegados.

• Ocupações

A vila Três Pinheiros, no Butiatuvinha, já é conhecida na região de Santa Felicidade como o pequeno Haiti. Há pelos menos cinco comunidades na ocupação, pelo menos duas delas recém-formadas. Uma é só de moças – empregadas em redes de farmácia. A dona de um pequeno mercado garante que entende tudo o que os novos vizinhos falam, mas a mímica ainda impera. Uma das urgências para a nova comunidade são as aulas de português e a integração ao sistema de ensino.

Bon soir

Salão ao lado de igreja, em Santa Felicidade, é único território haitiano em Curitiba

• Em francês

A Pastoral do Migrante atende a pessoas de qualquer país, mas, de um ano para cá, o espaço está ocupado pelos haitianos. Diferente de nacionalidades como a paraguaia ou a boliviana, eles não dispõem de um espaço comum. Resta-lhes o salão ao lado da Paróquia São José, em Santa Felicidade. Naqueles aproximados 80 metros quadrados, a língua extraoficial é o francês e o crioulo. Bon soir, dizem os haitianos quando chegam diante da assistente social Elizete Sant’Anna.A falta de emprego e a dificuldade de adaptação faz com que muitos cheguem ali em busca de ajuda.

• Na fila

Vindos de uma economia informal, muitos haitianos estranham as leis trabalhistas brasileiras. Há 9 mil deles no país. Sofrem com os horários. Discordam de tantos descontos. O trabalho noturno é pouco tolerado pelas mulheres. Não faltam denúncias de exploração e calotes. Há quem veja na vulnerabilidade haitiana motivos para lhes pedir préstimos para os quais não foram contratados.

• Vodu

A maior parte dos haitianos se declara católico, embora também entre eles seja crescente o número de evangélicos. Do vodu, culto afro predominante no Haiti, fala-se pouco, talvez por medo do preconceito.

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  • Padre Gustot: visita de porta em porta
  • Dieugrand trabalha no Pátio Batel
  • Demostherne procura emprego em Pinhais
  • A república do Pátio Batel:Nove haitianos – entre eles uma mulher – trabalham na construção do Shopping Pátio Batel. Eles são acompanhados pelo gerente de recursos humanos Jean Cordeiro. Operários como Modeste Aurilus, de 24 anos, perdeu 11 pessoas no terremoto de 2010. Para chegar ao Brasil, passou pelo Panamá, Equador e Peru. Wilner Rosiek, 26, esteve na República Dominicana e, no Brasil, trabalhou em Porto Alegre. Seus colegas Dieunel, Pascal, Lafuntant, Guerson, Dieugrand e Ernseau contam histórias parecidas. São ajudados na comunicação por Gasnet Castin, 31 anos, morador de Santa Felicidade, intérprete do português para todo o grupo
  • Operação tamanho família:Charles Valbon, 30 anos, é economista e contador. Lecionou Matemática e Física no Haiti – atividades que sonha retomar no Brasil, assim que dominar o idioma.
  • Quero ser negociante: Luís Vicente, 30 anos, ainda sofre com a adaptação ao Brasil, apesar de ter avançado no domínio da língua portuguesa. Mora numa pensão da Rua do Rosário, no Centro, e admite passar por muitas provações.
  • Fale com a Elizete:A assistente social Elizete Sant’Anna de Oliveira dá expedientes todos os dias na Pastoral do Migrante, em Santa Felicidade. Virou uma mãe informal dos haitianos e sabedora dos problemas com os
  • Recém-chegado 1:O professor de ensino básico Jean Robert, de 46 anos, mora numa garagem, com mais seis pessoas, na Vila Três Pinheiros, ocupação no bairro Butiatuvinha, vizinho a Santa Felicidade. Dono de um francês lustroso – que atesta seu tempo de sala de aula – ele passou pela Bolívia e Peru antes de chegar ao Brasil. Procura uma vaga na construção civil
  • Recém-chegado 2:Altidor Elces, 44 anos, faz parte da ala dos desempregados da
  • República de Pinhais:Cena da rotina na casa habitada por dez haitianos na Rua Alzira Rodrigues da Silva, e Pinhais. Evangélicos na maioria, moradores seguem rotina rígida, inclusive com hora para escutar música gospel
  • Amigo do
  • Em busca da felicidade 1:Morador da
  • Em busca da felicidade 2:Rotina na
  • O padre haitiano dos haitianos:O haitiano Gustot Lucien, 40, tinha 19 anos e estudava Pedagogia quando avisou aos pais que queria ser padre. Tempos depois, acabou vindo parar no Brasil, onde estudou Teologia. Membro da congregação carlista – voltada para o atendimento aos migrantes – acabou desembarcando em Santa Felicidade, para ali exercer o sacerdócio. De um ano para cá, atende seus conterrâneos. Faz pastoral de porta em porta, visitando os haitianos em todos os municípios da Região Metropolitana nos quais se instalaram. Semana passada esteve em Itabiporã, mina de ouro onde trabalham 32 haitianos. É um bom definidor de seu povo. Chama-os de otimistas, solidários, bons vizinhos.

Charles Vallon, 30 anos, é economista; Emanuel Giraut, 25, estudante de Direito; Jean Robert, 46, professor do ensino básico; Wilgens Seneus, 26, faz design de joias. Nenhum dos quatro atua na área. Quando lhes perguntam em que gostariam de trabalhar, respondem que "procuram serviço na construção civil", área de atuação que melhor paga os imigrantes haitianos que fizeram de Curitiba e Região Metropolitana seu porto a partir de janeiro de 2012.

SLIDESHOW: Veja fotos das comunidades haitianas

Os dados não são absolutos. De acordo com a Polícia Federal, 247 haitianos vivem em Curitiba. Para a Pastoral do Migrante – serviço da Igreja Católica envolvido com a acolhida dos viajantes –, seriam pouco mais de 500. Em média, 12 por dia recorrem à pastoral, que funciona na Avenida Manoel Ribas, em Santa Felicidade. Procuram ocupação profissional nas 20 empresas voluntárias, roupas, alimentos, orientação da assistente social Elizete Sant’Anna e do padre Gustot Lucien, 40, haitiano com uma década de Brasil, convertido em autoridade no assunto.

Os recém-chegados têm em comum não só a memória do terremoto de 2010 – é raro algum que não tenha pelo menos um parente morto ou mutilado na tragédia. Eles são jovens e jovens adultos – entre 24 e 44 anos –, homens na maioria, têm estudo fundamental, são casados ou comprometidos, falam francês e creole. Não fosse a língua, estariam em condições melhores do que a maioria dos brasileiros médios.

Enfrentaram longa viagem até aqui, com passagens atribuladas pelo Acre e Mato Grosso. Querem fazer a vida no Paraná, apesar do frio nunca antes experimentado e dos vizinhos, que ainda os olham com desconfiança. Acreditam que devem começar pelo serviço de pedreiro, função mais adequada para quem aprende português "na marra". Para as mulheres, a cozinha, desde que não precisem voltar de madrugada, algo quase proibitivo para uma haitiana.

Não é tudo. A construção civil paga entre R$ 1,2 mil e R$ 2 mil, com benefícios, garantia de que um haitiano empregado poderá realizar o maior de todos os desejos: trazer mulher e filhos para o Brasil, deixando-­os perto de um final feliz. A reportagem da Gazeta do Povo conversou com cerca de 30 imigrantes da ilha caribenha. Com exceção de um, que perguntou qual o segredo para namorar uma brasileira, todos os outros contaram juntar os tostões para trazer a família. Uma viagem dessa não sai por menos de R$ 2,5 mil. Poucos, por enquanto, conseguiram arcar com as despesas.

Saudade

Os haitianos encontram dificuldades de emprego, de moradia, de adaptação e o olho vesgo da população. Mas nenhum problema é maior do que o sentimental. A maioria está há mais de um ano longe da mulher e dos filhos, vivendo em alojamento, num país de hábitos e idioma estranhos. Tímidos, há quem pergunte se, por acaso, o governo brasileiro – que facilitou os vistos de entrada – não pensa em trazer o resto das famílias. "Cada noite sinto mais saudade", admite Dieunel Saintilus, 27, operário do Shopping Pátio Batel, ao lado de outros oito conterrâneos ali empregados.

Os haitianos têm fama de resistentes à pobreza e às adversidades. E de alegres – uma meia verdade. "Não é tudo tão bonito como parece", comenta Elizete, sobre o grupo que chama atenção pelo asseio e educação principesca. Muitos foram enganados por coiotes, que lhes venderam a ilusão do Paraná rico e cobraram caro por isso – até US$ 2,5 mil. Houve quem deixou profissão e segurança. É comum relatos sobre médicos e poliglotas entre os refugiados. "Temo quando começam a se deprimir", confessa padre Gustot, ao contar de uma jovem que acaba de ajudar a voltar ao país. Tudo indica que um período de retorno de muitos outros deva se seguir.

A conta para os haitianos, afinal, é mais complicada do que parece. Eles vivem em repúblicas espalhadas por bairros como Boa Vista e Butiatuvinha; em cidades como Colombo, Pinhais e São José dos Pinhais. Como não conseguem fiadores, alugam casebres em ocupações irregulares, o que não lhes sai barato. Um quarto e sala numa favela pode custar R$ 500 ao mês. Dividem todas as despesas de cama e mesa. Solidários, acolhem os colegas sem-teto, o que faz com que numa casa haja sempre uma parcela desempregada. "Encontrei dois na Rodoviária. Trouxe-os comigo", conta Garnet Castin, 31, sobre haitianos passados para trás pelos "coiotes" e abandonados ao chegar.

Um dos maiores orgulhos da comunidade é dizer que não há nenhum haitiano mendigo. Dentro das casas, chama atenção a ordem e a limpeza, contrastando muitas vezes com as vilas em que estão. A mendicância, aliás, é uma das muitas coisas do Brasil que não entendem. "Deve ser destino", arrisca o ex-comerciante e candidato "à obra" Luiz Vicente, 30 anos. Ele divide uma pensão da Rua do Rosário, Centro de Curitiba, com outros 30 compatriotas. Em três meses, vira-se bem no português, uma exceção à regra. Não leva o menor jeito para erguer paredes – mas promete levantar muitas até trazer sua noiva para o Mundo Novo. É seu sonho. O segundo, trabalhar numa loja. "Por que não? Sou bom nisso", garante. Recado dado.

Haitianos

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