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Entrevista

A sociedade das vistas grossas

Para especialista, combate à exploração sexual infantil no Brasil é desorganizado e população está alheia ao problema

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O Brasil precisa de políticas públicas conjuntas e bem articuladas, de investimento maciço em educação e saúde e de um amplo trabalho de conscientização para combater com eficácia a exploração sexual de crianças e adolescentes. A opinião é de Marlene Vaz, 63 anos. Uma das maiores especialistas do assunto no país, ela é socióloga, pesquisadora e consultora para o assunto em organismos internacionais.

Com vários livros publicados em 33 anos de atuação, Marlene não tem receio de colocar o dedo em muitas feridas, seja no machismo cultural ou na inoperância das polícias e dos governos em tratar o assunto. "Os homens são criados apenas para ver o seu falo", dispara. Marlene, que mora em Salvador (BA), esteve em Paranaguá na sexta-feira, participando de um seminário sobre o tema, quando foi assinado o Pacto de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil. Veja os principais trechos da entrevista exclusiva concedida à Gazeta do Povo.

É possível arriscar um número de crianças e adolescentes explorados no país?

Se alguém falar um número, não acredite. A maioria dos registros é de abuso sexual. É uma violência que se popularizou, as pessoas olham e nem prestam mais atenção. Cansei de ver meninas de oito, dez anos de idade nas noites deste país, nas orlas marítimas, vendendo amendoim nas mesas e sendo apalpadas na partes sexuais por turistas, especialmente estrangeiros. Ninguém se indigna, todo mundo fica ali tomando seu chopinho. Porque é a "mais antiga das profissões", tem toda essa conversa fiada. Se eu cito um número de meninas, ele é muito subestimado. Não vale a pena. Quem precisa de números é o governo, para fazer um planejamento.

Se todos vêem, por que a polícia não prende os exploradores?

Primeiro porque tem que ter a denúncia, e as pessoas têm medo. Quando a denúncia existe, a polícia vai fazer a diligência, mas não tem carro ou o carro está quebrado... Os inquéritos nunca se concluem. Muitos nem abrem. Não tem como fazer um inquérito para que o Ministério Público ofereça a denúncia. Quando o promotor faz a denúncia – na maioria das vezes de abuso sexual, porque de exploração é muito difícil –, poucos acusados são condenados. Por causa da falta de provas, o juiz não pode fazer nada. Por incompetência, conivência ou desinformação policial.

Então, a polícia também é um problema neste processo?

É, porque no Brasil ela está envolvida. Não só a Polícia Militar, que é mais visível por causa do uniforme, mas tem muito policial civil também. Eles recebem dinheiro para deixar correr livre. Tem policial que recebe do cafetão, da cafetina. Muitas vezes as meninas pagam com serviços sexuais e eles dão proteção. Ou ela [a polícia] é conivente ou é incompetente. E tem mais, só a repressão não adianta. O mundo da ilegalidade não é burro, é muito mais inteligente do que nós pensamos. Se rastrearem os celulares [das meninas exploradas], vão descobrir outro modo de se comunicar com as meninas.

Qual a faixa etária das meninas exploradas?

Vi uma menina de cinco anos em Manaus. Em Salvador tinha uma menina de chupeta na boca com uma roupa erotizada, dançando na frente dos carros. A sociedade é hipócrita. As pessoas pensam "isso não me incomoda, não tem nada a ver com minha vida, não é minha filha".

A senhora disse que falta articulação e políticas públicas conjuntas. Imaginemos que isso existisse: a lei que temos hoje seria suficiente?

Em muitos casos sim, em outros não. Se pegarmos um caminhoneiro na estrada com uma adolescente, não poderemos fazer nada porque o Estatuto da Criança e do Adolescente só fala em criança. Os policiais rodoviários devem ser orientados. Se desconfiarem que a criança não é filha do caminhoneiro, que comecem a fiscalizar rigorosamente a carga, para segurá-lo ali. É o tempo de chamar o Conselho Tutelar. Já aconteceu isso em Salvador. Além da lei, é preciso montar estratégias. Por isso essas pessoas têm de ser muito bem capacitadas.

A senhora afirma que a pobreza é um dos principais fatores que influenciam o problema. Então Bolsa Família ajuda no combate à exploração sexual?

Em casa que falta pão os roncos da fome soam muito mais alto do que as batidas do coração. A fome tira a dignidade das pessoas. Uma coisa é teorizar sobre a fome, outra é enfrentar a fome. O Bolsa Família tira sim meninas da rua, mas poderia ter tirado mais, se houvesse melhor controle. Bato palmas para o programa, porque ele uniu as políticas públicas, que eram uma colcha de retalhos, mas até hoje não há um resultado dessa avaliação. O governo federal queria fazer o controle desse repasse, mas os estados não aceitaram, os governadores queriam eles mesmos fazer o controle. Diante disso, os municípios disseram que eles também queriam fazer o controle. E não existe um sistema de notificação nacional. O governo federal tinha que exigir que repassassem isso. Se esses recursos não fossem desviados, como a gente vê todo dia, resolveriam um grande problema. Muito dessa situação poderia ser revertida. Porque só vai haver distribuição de renda quando essas meninas tiverem educação e forem absorvidas pelo mercado de trabalho.

Casos de violência sexual chocam a sociedade. Já em relação à exploração sexual de crianças parece haver uma vista grossa. Por quê?

É a dominação do homem sobre a mulher. A sociedade é machista. A primeira coisa que dizem é a seguinte: "Mas a menina está com saia curta e homem é homem". Isso independe do nível cultural. Há clientes de vários tipos, tem os encontros sofisticados. As meninas são arrumadas para atender o poder. É difícil [tirá-las dessa vida], mas não é impossível. O ato sexual se torna uma compulsão. Aliado a isso vem fumo, álcool e drogas. É um conjunto difícil de combater.

Existe a prostituição de "alto nível" que envolve meninas de 15, 16 anos. Qual a relação desse mundo com o das meninas pobres?

Todas as prostitutas adultas que eu conheci me disseram que começaram quando eram crianças ou adolescentes. Encontramos pontualmente caso de meninas de classe média que querem ter o jeans da moda. Mas elas não têm o direito de desejar isso? Têm, do mesmo jeito que as nossas. A prevenção deve ser feita por meio da educação, da saúde. Tem o caso das meninas de classe média que, para fugir de casa, vão para a rua. E muitas delas não sabem fazer outra coisa. Mas a maioria, digo por experiência, é vítima da pobreza.

Se a senhora tivesse o poder para estabelecer a política de combate à exploração infantil, o que faria?

A primeira coisa é ter controle sobre os repasses do Bolsa Família. Os postos de saúde têm de ser trabalhados, os agentes de saúde têm de trabalhar com a família. Os policiais precisam ser capacitados. É preciso educação e saúde. Educação não faz milagre, mas sem educação nem milagre resolve. A proteção deve começar na escola. O Ministério da Educação tem de fazer um trabalho de educação sexual, até hoje não há uma política de educação sexual. Essas duas áreas [educação e saúde] podem perfeitamente diagnosticar situações de risco. Na escola é a professora, na saúde é o agente de saúde comunitário. É preciso trabalhar com essas famílias, mostrar que a violência sexual é uma questão de saúde pública. E tem a questão dos conselhos tutelares, que são pessimamente equipados no país, porque ficam à mercê das políticas municipais. Se o prefeito concorda com o conselho, dá suporte; se não, acabou. Cada vez mais os conselhos tutelares estão se deteriorando, porque não são cargos políticos.

Marlene Vaz, socióloga, pesquisadora e consultora.

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