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Impunidade

Em Santa Maria, ninguém está preso e não houve indenizações

Um ano depois da morte de 242 jovens dentro da boate Kiss, em Santa Maria, não há presos nem agentes públicos responsabilizados. Até agora, nenhuma família ou sobrevivente foi indenizado e não existe previsão para o julgamento das oito pessoas indiciadas pelo incêndio. Presos logo após o acidente, dois sócios da boate e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, um deles responsável pelo uso do sinalizador que provocou o fogo, estão em liberdade.

Para a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio Grande do Sul, não existem mais chances de algum agente público que cuidava da fiscalização de casas noturnas ser responsabilizado criminalmente. Em abril, o MPE barrou o indiciamento por homicídio doloso (com intenção de matar) de três secretários e de um fiscal.

"Para alguém responder por homicídio doloso nesse caso, tem de haver nexo causal com a espuma ou com o fogo. Se não é provado que a pessoa tem relação com isso, ela não pode ser acusada de dolo", disse Joel Dutra, um dos promotores. "É muito difícil comprovar que alguém agiu com intenção de deixar a boate aberta para que ocorresse a tragédia", resumiu a delegada Luisa Sousa, responsável pelo inquérito policial.

Oito pessoas aguardam o julgamento em liberdade: os dois sócios a boate, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffman; dois músicos da banda, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão (por homicídio doloso); dois bombeiros que deram laudo para a boate Gerson da Rosa Pereira e Renan Severo Berleze (fraude processual); e duas pessoas acusadas de falso testemunho para proteger os empresários, Elton Cristiano Uroda e Volmir Astor Panzer. Os advogados de Hoffman e Santos não foram localizados; a defesa dos outros seis não quis se manifestar.

Agência Estado

Sobreviventes ainda lutam para respirar

Um ano depois do incêndio na Kiss, a jovem Jéssica Duarte da Rosa, de 21 anos, ainda vai ao pneumologista todo mês. "Tenho escarro preto, ainda da foligem, e uma tosse feia", conta. No começo desse ano, ela refez uma bateria de exames para saber qual a situação do seu pulmão.

Ela não é a única. Pelo menos outros 42 sobreviventes, que foram socorridos em estado grave, ainda lutam para expelir a fuligem acumulada nos pulmões, contaminados pela fumaça tóxica que matou, por asfixia, a maior parte das 242 vítimas. A voz deles perdeu potência, a tosse nunca para e o cansaço chega depois de poucos passos.

Alguns sobreviventes passam o dia com um gosto de "borracha queimada" na boca. Outros relatam sentir, quando respiram, o mesmo cheiro da fumaça que tomou conta da boate em menos de três minutos -- eles tomam medicamento para expelir um catarro negro. "É como se eles tivessem fumado por mais de cem anos", diz Ana Cervi Prado, médica coordenadora do Centro Integrado de Assistência às Vítimas de Acidente (Ciava), um ambulatório montado exclusivamente para recuperar os feridos, onde vão ficar por mais cinco anos. (FT, com AE)

"Apesar das marcas que tenho no corpo, às vezes esqueço do que me aconteceu", diz Jéssica Duarte da Rosa, que estava na Boate Kiss, em Santa Maria (RS) naquele 27 de janeiro de 2013, quando o incêndio que matou 242 pessoas começou. Depois de passar um mês no hospital, para se recuperar das queimaduras e da intoxicação, ela veio para Colombo, na Região Metropolitana de Curitiba, morar com os pais e reconstruir a vida. Em um ano, foi necessário disciplina e obstinação. Mesmo com mais cirurgias, sessões diárias de fisioterapia, visitas ao pneumologista e psicólogo, arrumou tempo para fazer um cursinho pré-vestibular. No próximo mês, vai começar a cursar Fisioterapia na Universidade Positivo.

"Meu pai até sugeriu que eu deixasse passar o ano e não fizesse nada, mas nunca pensei nisso", conta. As sessões de fisioterapia diárias – além de devolverem parte dos movimentos, inclusive os que fizeram Jéssica voltar a escrever – também foram determinantes para a escolha da nova carreira profissional. Na época da tragédia, Jéssica se preparava para entrar no último ano da faculdade de administração, na Universidade Federal de Santa Maria. Ela largou o curso, mas voltará para a cidade em fevereiro, para participar da formatura da turma com quem conviveu por anos.

Iemanjá

A força para recomeçar vem da família e da fé. "Não sei se foi o que me ajudou, mas quando aconteceu [o incêndio], tive muita fé e pedi por minha protetora, Iemanjá", conta. Ao seu lado, estão os pais, Claudio e Regina; e o irmãozinho Guilherme, "seu anjo". "Sou forte por toda a força que eles tiveram para me fazer viver", diz.

A lembrança do namorado, Bruno Portella Fricks, que estava com ela na boate e morreu no hospital, também ajuda a seguir em frente. "Depois soube que ele voltou duas vezes para tentar me buscar. Na terceira, não deixaram ele entrar. Ele praticamente deu a vida por mim", reflete. Em homenagem a Bruno, fez uma nova tatuagem, logo abaixo das borboletas que têm nos pés – imagem que representava o casal.

A fisioterapia ainda vai acompanhar a jovem por um bom tempo. No ano passado, Jéssica fez novas cirurgias, para corrigir um problema de encurtamento no braço. No decorrer deste ano, deve fazer operações para reduzir as queloides, marcas do fogo. Todas as cirurgias são feitas no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, referência para o tratamento de queimados.

A meta agora é começar bem a faculdade, encontrar um estágio até o fim do ano, ter uma vida melhor e fazer mais amigos. No cursinho, já conheceu mais gente e até frequentou alguns lugares à noite. "Se eu ficar com trauma, o que vou fazer? Ainda sou jovem, tenho que sair e me divertir", diz. A única coisa que Jéssica não quer é que a tragédia seja esquecida, impunemente. "Todas as mortes não podem ser em vão", argumenta.

"A cidade estava em choque", lembra voluntário

Quando ligou a tevê naque­la manhã de domingo, um ano atrás, o médico Marcio Luiz Nogarolli viu as primei­ras imagens do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. Percebendo a gravidade da situação, o pro­fissional, que atende pelo Ser­viço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Curitiba e é especialista em transporte de pacientes de alto risco, imediatamente se colocou à disposição para ir até o Rio Grande do Sul. Na terça-feira seguinte, embarcou para Santa Maria com uma equipe cedida pela prefeitura de Curitiba.

"A cidade estava em choque. Entrei na UTI quando ainda havia 16 jovens internados. Fiquei desesperado porque me deparei com uma situação muito diferente do que a gente vê todo dia. Você vê pessoas com aspecto doente. Em Santa Maria, vi pessoas jovens, bonitas e sem ferimentos, mas entubadas. Tenho filhos daquela idade, não tem como não se afetar", desabafa.

A equipe de Curitiba ajudou no hospital por quase uma semana. Como os pacientes mais graves já haviam sido transferidos para Porto Alegre, o momento era de prestar auxílio àqueles que ficaram – e também compensar o trabalho árduo das equipes de saúde locais, que trabalharam nos dias anteriores.

"Fui para Santa Maria para ajudar e voltei com o coração cheio de vida. Foi a coisa mais bonita que eu fiz como médico, a tarefa que mais me recompensou como profissional", conta.

Os profissionais da Força Nacional do SUS que se dispõem a atuar como voluntários em tragédias foram novamente convocados para auxiliar nas enchentes no Espírito Santo, no início do ano. Todos os médicos estão conectados a uma rede de troca de mensagens e podem ser rapidamente acionados.

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