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Cidade

A vingança do Umbará

Antiga zona rural de Curitiba amargou século de esquecimento do poder público. Seus moradores ganharam fama de ser de pouca conversa. Agora, parece que a cidade resolveu se mudar para lá

A nonna Águeda Negrelo tem 94 anos. A casa em que criou os oito filhos tem cerca de um século e está numa chácara de seis alqueires, a 25 quilômetros da Praça Tiradentes. Sob os cuidados de uma nora, a veterana desfia rosário de lembranças, como a crença de que a televisão ia deixar os bambinos cegos. Ela ri: a luz, ali, chegou tarde e com crendices. Hoje, sabe que o bairro cresce. E diz: “Não estamos preparados para tanta gente." | Fotos: Albari Rosa/Gazeta do Povo
A nonna Águeda Negrelo tem 94 anos. A casa em que criou os oito filhos tem cerca de um século e está numa chácara de seis alqueires, a 25 quilômetros da Praça Tiradentes. Sob os cuidados de uma nora, a veterana desfia rosário de lembranças, como a crença de que a televisão ia deixar os bambinos cegos. Ela ri: a luz, ali, chegou tarde e com crendices. Hoje, sabe que o bairro cresce. E diz: “Não estamos preparados para tanta gente." (Foto: Fotos: Albari Rosa/Gazeta do Povo)
A cabocla Teresa Calixto, 76 anos, e dois de seus netos. Ela é a mulher mais velha do Calixto, uma das zonas mais antigas da colonização do Umbará. Até pouco tempo, as ruas da vila, apelidada de Cambau, não tinham nem nome. Hoje, homenageiam os pioneiros da região |

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A cabocla Teresa Calixto, 76 anos, e dois de seus netos. Ela é a mulher mais velha do Calixto, uma das zonas mais antigas da colonização do Umbará. Até pouco tempo, as ruas da vila, apelidada de Cambau, não tinham nem nome. Hoje, homenageiam os pioneiros da região

O resistente Alceu Pellanda, 54 anos, mantém quase três alqueires de plantação orgânica no Umbará. Também cria ovelhas. Lamenta que nenhum morador ganhe incentivo público por manter a natureza local.

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O resistente Alceu Pellanda, 54 anos, mantém quase três alqueires de plantação orgânica no Umbará. Também cria ovelhas. Lamenta que nenhum morador ganhe incentivo público por manter a natureza local.

Durante um século, o Umbará, na Zona Sul de Curitiba, foi sinônimo de lonjura. Morar naquelas bandas implicava, mesmo em tempos recentes, penar na fila do ônibus, fazer filas para usar o telefone público e estar mais perto de Marte do que de uma banquinha de revistas. Viver na região também significava se enfurnar em casa nos dias de chuva. De tão freqüente, o lamaçal virou uma lenda: a palavra "Umbará" – de origem indígena e com registros já na segunda década do século 19 – teria nascido de um italianês de colônia: "um barrá".

Mas os tempos são outros. É fato que o bairro ainda guarda características de zona rural e a infra-estrutura permanece sofrível. Mas a "cidade" que resistia em migrar para aquelas bandas hoje está prestes a promover uma intrépida "Conquista do Sul". O Umbará virou objeto de desejo. É aí que mora o perigo. De distante e lamacento converteu-se numa espécie de ilha da fantasia em meio ao sufoco urbano.

O primeiro motivo para a caravana é que muitos curitibanos enxergam na região uma sobra da capital que não existe mais. "Canso de ouvir gente dizendo que o Umbará parece Curitiba de antigamente", comenta o contador Altervir Burbello, dono de um grande escritório de contabilidade no "centro nervoso" do bairro – o microtrecho da Avenida Nicola Pellanda que abriga a Matriz de São Pedro, o Colégio Estadual Padre Cláudio Morelli e meia dúzia de bares-restaurantes que não fazem jus ao macarrão das nonnas. Sim – as "primas" Santa Felicidade e Água Verde já foram assim um dia.

A "turma da saudade", contudo, não representa nenhuma ameaça. O mesmo não se diga dos condomínios de luxo, dos loteamentos populares e das ocupações irregulares – três tipos de habitação que não só avançam sobre a região como prometem alterá-la em definitivo. A depender de quem falar mais alto, a antiga colônia pode se transformar num dublê do Alphaville, numa imensa zona favelizada ou em uma extensão de seus vizinhos pobres e populosos – o Tatuquara e o Sítio Cercado.

O problema é que nenhum dos competidores merece o pódio. O Umbará – segundo maior bairro da capital, atrás da CIC – tem 22,4 milhões de metros quadrados, garantindo a fábula de 533 metros quadrados de área verde por morador. A média municipal beira 10% disso. Em miúdos: "é o pulmão".

Dentre os candidatos a tomar posse do Umbará, os que mais metem medo na prefeitura são os sem-teto, hoje instalados em três ocupações e sete loteamentos irregulares. Com míseros 7,5 habitantes por hectare, o bairro seria o endereço natural para os órfãos dos programas de moradia. No circuito das ocupações, contudo, a desconfiança do poder municipal já virou piada: viver ali só é bom para quem consegue emprego na Ceasa. A região é o pior dos mundos para quem vive na informalidade.

De fato, poucas áreas de Curitiba têm tão pouco comércio – 1.304 estabelecimentos – cinco vezes menos que o pequeno Capão Raso. Mesmo os descendentes de italianos parecem pouco preocupados com as ocupações, isoladas numa ponta da Avenida Nicola Pellanda.

Dois problemas tiram o sono da parcela bem-sucedida do bairro: a transformação da Nicola Pellanda num corredor industrial entre Fazenda Rio Grande e Curitiba (leia na página 6) e os conjuntos assinados pela Cohab-CT, hoje em número de 18, somando 3.010 unidades – algo próximo de 12 mil pessoas. É como se um novo Umbará inteiro tivesse mudado para lá. O raciocínio é simples: a oficialização como bairro popular poderia afugentar os empreendedores de condomínios fechados, tipo de vizinhança que lhes parece mais adequada.

Os muros altos já estão a olhos vistos, mas é uma lenha descobrir quantos são. Dados da Secretaria Municipal de Urbanismo indicam, em 2008, 19 alvarás para residências e 4 para construções em série. No Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) a informação é de que foram 29 alvarás este ano e 11 ano passado, mas ninguém sabe informar se são condomínios fechados ou não. De qualquer modo, a primeira impressão fica: a muralha está invadindo a roça.

No Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), não é de hoje que o Umbará passeia pelas pranchetas. No início dos anos 2000, preocupava a turma do Patrimônio, que chegou a mapear o incrível casario de madeira da Nicola Pellanda com a intenção de transformar algumas residências em Uips – Unidades de Interesse de Preservação. O medo, então, era que os proprietários assustados botassem tudo abaixo. Deu empate – nem se preservou a região e a cada dia uma daquelas maravilhas da arquitetura colonial vira lenha.

O fato é que o que importa à prefeitura agora é salvar o bairro do desmatamento. Um grupo de técnicos do Ippuc vai permanecer a portas fechadas, até o início do ano, debruçado sobre dados e mapas da região – hoje considerada área de risco. Como em tempos idos era zona agrícola, o Umbará tem grandes glebas e é alvo de especulação imobiliária. Para segurar a onda, a prefeitura anda dificultando aos herdeiros a divisão das propriedades em áreas muito extensas, o que pode tentar alguns deles a loteá-la, levando a mata a pique.

O arquiteto Reginaldo Reinert, à frente do projeto, resume a ópera: "O Umbará teve sorte e azar", decreta, ao falar do saldo das poucas ligações viárias somadas ao isolamento geográfico. A sorte é que ficou protegido. O azar é que pode ser atropelado pela pressa com que a cidade olha para lá. Se conseguir agregar todas as gentes, e manter-se verde, vai ser sua segunda vingança, e a sorte de todos.

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