
"Eu vou contar para vocês a melhor maneira de enterrar a sogra", grita ao microfone o vendedor Ilson Estefani, 58 anos, o "Gaúcho", mirando a plateia de uma centena de pessoas que lota o auditório do TUC Teatro Universitário, na Galeria Júlio Moreira. É o início de mais uma edição do Canja de Viola, projeto da Fundação Cultural de Curitiba em cartaz há nada menos do que 26 anos. O horário, três da tarde de domingo aquele em que o macarrão e a maionese do almoço pesam na barriga e nos olhos não impede as gargalhadas.
Se alguém pestanejar, o Gaúcho acorda com mais um gracejo. "Vamos cantar O dia em que saí de carro?", pergunta, pronto para mais uma paródia da toada que marcou o filme Os Dois Filhos de Francisco, inspirado na vida de Zezé Di Camargo e Luciano. Mais risos. Entre uma piada e outra do animador, cerca de 25 duplas sertanejas anônimas sobem ao pequeno palco para se apresentar. Cada artista tem direito a duas músicas. Não há seleção. Os candidatos se inscrevem meia hora antes e garantem sua vaga. Podem ser os veteranos Sertanejo e Pescador, Rosinha do Acordeão, ou algum recém-chegado à roda.
FOTOS: Veja slide show do Canja de Viola
"O show é comunitário. Quem canta bem canta. E quem não canta bem também canta", faz trocadilhos Alcinda Santana, funcionária da fundação que ao lado de Patrícia Silva coordena esse que pode ser chamado de o mais importante espaço para a cultura popular da capital paranaense. Não tem folga. Não vale vaia. Todo domingo é sempre igual. Inclusive são iguais, ou quase, as histórias dos participantes. "Todos nós somos os dois filhos de Francisco. Começamos guris e queremos ser descobertos", teoriza Gaúcho, sobre as lamúrias sertanejas que ouve nos 12 anos que frequenta a Canja.
Túnel
"Gaúcho de Califórnia", no Paraná, começou a cantar em 1966, formando com um mano a dupla Gaúcho e Gauchinho. Qual tantos outros, imitava Tonico e Tinoco e, claro, Teixeirinha. São ídolos. Em Fênix, cidade da qual chegou a ser vice-prefeito, promovia encontros de violeiros e de trovas, sua paixão confessa. A vinda para a capital, atrás de ensino para os dois filhos, o jogou no marasmo. Até encontrar dois cantores na Praça Tiradentes e saber por eles o que acontecia aos domingos no "túnel atrás da Catedral", como é chamada a galeria. Veio, viu e venceu.
"Isso aqui é um pequeno pedaço do interior. Acho que todas as pessoas que estão aqui são de fora e um dia se sentiram longe de casa. Somos uma família. É como se a gente estivesse na cidade da gente de novo", fala, com voz embargada, para voltar em segundos ao chiste de sempre. Fala de seu maior sucesso nas paradas do TUC, "Freada de Bicicleta", uma canção hilária sobre o homem que abandona a amada e lhe deixa uma "zorba suja". "É um sarro, a turma adora. Cantar só dor de corno assusta, né". Mas antes que o tomem por um tirador de sarro profissional, avisa: é também autor de versos emocionados, como "Gaúcho Solitário". Canta em Ré Maior e Sol Maior. Seu parceiro é Cachimbo. E certa vez teve 450 votos para vereador. "Devo tudo ao Canja..."
"Tiões"
Ninguém disse que é lei, mas a alegria parece ser a regra número um do Canja de Viola, não raro com algumas pitadas da ingenuidade do Brasil caboclo. Melhor não perguntar a Sebastião..., ops, a Campo Grande, por exemplo, qual o primeiro instrumento que tocou na vida. A resposta "não" vai ser violão ou acordeão. A propósito, arrisca que o reduto sertanejo do Centro tenha a maior concentração mundial de Sebastiões. "Todo mundo aqui é Tião", brincam. A contar pelo mais famoso deles, o mineiro Tião Moreno, de inacreditáveis 70 anos. Não toca nenhum instrumento, contrariando as lendas sobre o pacto entre violeiros do sertão e o "coisa ruim". Ele só canta. Só é modo de dizer é uma lenda do grupo. "Vou até na igreja para cantar", avisa.
No mais, Tião Moreno é como todo mundo: sonha gravar um CD, tocar na rádio, ser atração de rodeiro. Vez ou outra há um lampejo de esperança. Aparece por lá um famoso, como o grupo Viola Quebrada. Ou uma dupla como a do Lero e Lerinho fofocando que "agora o disco sai". É o basta para acender a chama. Alguém ali há de ser como Teodoro e Sampaio, Chico Rei e Paraná ou Chitãozinho e Xororó, todos oriundos das muitas Califórnias paranaenses.
Aliás, quanto o assunto é fazer sucesso, rola um lamento naqueles subterrâneos. "Não somos chamados para cantar"; "cadê a rádio e a tevê? A gente daria audiência". Gaúcho diz "deixa disso", anima a tropa e vez em quando leva a turma de Van até Fênix. São recebidos como astros. Já Curitiba... "Quem sabe o próximo prefeito", grita um, como se estivesse numa quadrilha. O Brasil caipira é assim lamento triste seguido de festa. Nessas horas, o pequeno Tuca fica grande que só vendo.




