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 | Fotos: Sandra Terena/Gazeta do Povo
| Foto: Fotos: Sandra Terena/Gazeta do Povo

Uma bala na bolsa e R$ 37,3 mil tirados do banco

Na Ilha de Medeiros, a pescadora Ozília do Rosário desmaiou quando foi informada pela reportagem sobre o saque de sua indenização no caso do acidente do navio Norma. Ela e o irmão, Ozias do Rosário, foram no dia seguinte a Paranaguá para conferir a informação. Na saída da agência da Caixa Econômica Federal, Ozília voltou a passar mal com a confirmação de que R$ 37.320 liberados pela Justiça foram sacados de sua conta no dia 26 de outubro de 2012. Viúva, a pescadora passa sérias dificuldades atualmente.

Muito emocionada, contou que ela e o filho chegaram a passar fome nos últimos meses. "Eu não tenho vergonha de contar que vim para Paranaguá e saí de casa com uma bala. Mesmo com fome, voltei pra casa e levei de volta a bala para o meu filho. Eu não tinha dinheiro. A gente nem come para deixar para os filhos", disse. Assim como outros pescadores, Ozília registrou boletim de ocorrência contra a advogada Cristiane Uliana na delegacia de Paranaguá.

Outra comarca

Advogada executou parte das ações em Araucária

A advogada Cristiane Uliana executou 107 processos dos pescadores do Litoral do Paraná na cidade de Araucária, Região Metropolitana de Curitiba. A Gazeta do Povo procurou três desses casos e constatou, novamente, que uma parte das indenizações foi liberada pela Justiça e sacada sem o conhecimento dos pescadores. Um quarto caso semelhante chegou ao conhecimento da reportagem porque a irmã de um pescador fez a denúncia.

No dia 29 de abril de 2013, o juiz Evandro Portugal expediu o alvará de R$ 40.680 para o pescador Manoel Crisanto Mendes, baseado no artigo 475-O do CPC, para fins alimentares. O dinheiro foi sacado no dia 25 de maio de 2013, de acordo com extrato da Caixa Econômica Federal de Araucária. O dinheiro não chegou às mãos do pescador.

Aos 59 anos, Manoel não pode mais pescar porque sofreu um acidente grave em Pontal do Paraná, local onde pescava. Sequelas do acidente podem ser vistas no rosto de Manoel, que hoje é deficiente visual e sofre de epilepsia.

Hoje, ele vive com a irmã Isabel, que cuida dele. Ela disse à reportagem que nem ela nem o irmão tinham conhecimento da existência da ação e ficaram surpresos quando viram o nome de Manoel nas execuções de Araucária. Ela sustenta a família e o irmão com uma pequena pensão que recebe do ex-marido, que é presidente da Colônia de Pesca de Paranaguá. Um boletim de ocorrência de estelionato foi aberto pelo pescador na delegacia de Paranaguá.

Acidentes

Saiba mais sobre os desastres ambientais que afetaram o trabalho dos pescadores do Litoral

Poliduto Olapa

16 de fevereiro de 2001 - Em decorrência de fortes chuvas, a barreira de proteção que cercava o Poliduto Olapa, da Petrobras, se rompeu, jogando nas baías de Antonina e Paranaguá 48,5 mil litros de óleo. Milhares de pescadores ficaram sem trabalho, gerando uma série de pedidos judiciais de indenização. A Petrobras alega que o acidente se deu em circunstâncias que fugiram à sua responsabilidade.

Navio Norma

18 de outubro de 2001 – O navio Norma, da Petrobras, bate em uma pedra na baía de Paranaguá e um dos tanques que transportava nafta é atingido provocando o vazamento de 392 mil litros do produto, um derivado do petróleo que é altamente inflamável. O técnico mergulhador Nereu Gouveia morre enquanto avalia os danos no casco do petroleiro. Ele foi vítima de edema pulmonar devido a uma intoxicação aguda por nafta.

Navio Vicuña

15 de novembro de 2004 – O navio chileno Vicuña explode e mata dois tripulantes, despejando 291 mil litros de metanol, óleo diesel e óleo lubrificante na Baía de Paranaguá, que impediram a pesca por dois meses. Foram atingidas quatro unidades de conservação: Parque Nacional do Superagui, Estação Ecológica de Guaraqueçaba, Parque Estadual da Ilha do Mel e Estação Ecológica da Ilha do Mel. O óleo chegou ainda à Ilha da Cotinga e à Guaraqueçaba.

  • Representação foi protocolada por um pescador neste ano

Mais de uma década após três desastres ambientais de grandes proporções no Litoral do Paraná, 6 mil famílias de pescadores, catadores de caranguejo e marisqueiros ainda passam algum tipo de privação. Juntos, os dois vazamentos ligados à Petrobras (o de nafta do navio Norma e o de óleo do Poliduto Olapa, ambos em 2001) e a explosão do navio chileno Vicun㠖 que despejou milhares de litros de metanol, óleo diesel e óleo lubrificante na Baía de Paranaguá – deixaram essa população sem poder trabalhar por longos períodos e provocaram uma redução de 60% no volume de pescados que antes eram retirados das águas paranaenses.

E quem deveria trabalhar para amenizar a penúria de parte dos trabalhadores aproveita a situação em benefício próprio. Ao longo de um ano, a Gazeta do Povo conseguiu identificar 18 pescadores que desconheciam o andamento de ações indenizatórias em seu nome ligadas aos acidentes da Petrobras e também a concessão antecipada pela Justiça de parte dos montantes pedidos. Por meio de pesquisas no Fórum de Paranaguá e o acompanhamento desses pescadores até o banco, a reportagem constatou que valores entre R$ 7 mil e R$ 40 mil foram sacados pelo escritório da advogada que os representa, Cristiane Uliana, sem o conhecimento dos clientes.

Falta de transparência

A forma como os nomes de alguns pescadores constam nos sistemas de busca e controle de processos no Judiciário reforça a falta de transparência nas ações. Os sistemas trazem apenas as iniciais dos trabalhadores, como se os processos corressem em segredo de Justiça, embora sejam públicos.

João de Deus Cunha conta que por diversas vezes foi ao cartório e ao escritório de Cristiane em busca de informações sobre suas ações, mas obteve sempre a mesma resposta: não havia nenhuma execução provisória em nome dele. Cunha também pediu para amigos buscarem pelo seu processo no sistema da Assejepar, sistema on-line da Justiça, mas também não teve sucesso.

Registro

Ele e os amigos dificilmente encontrariam o que buscavam digitado o nome completo do pescador. No sistema é possível encontrar o processo de Cunha com as iniciais J.D.D.C. A informação é de que houve a liberação de uma indenização de R$ 7.746,88 em seu benefício. O extrato da conta judicial da Caixa Econômica Federal revela que o valor foi sacado no dia 21 de novembro de 2012 por quem tem procuração em nome do pescador.

Cunha também teve liberado pela Justiça o valor de R$ 30.600 no dia 26 de maio de 2010, em alvará assinado pelo juiz Hélio Arabori. Essa quantia foi sacada cinco dias depois, no dia 31, conforme extrato bancário a que a Gazeta do Povo teve acesso. Nenhum dos dois valores, porém, foi pago ao pescador. "Eu não sabia da existência destes processos. Já tinha ido várias vezes no escritório da minha advogada, mas sempre me enganavam dizendo que não havia nenhum processo no meu nome. Não consigo acreditar que me roubaram esse dinheiro", diz. O pescador registrou boletim de ocorrência contra Cristiane, que o representa nos dois processos, por apropriação indébita.

Profissional foi denunciada à OAB

Um dos pescadores representados por Cristiane Uliana, Reginaldo Modesto Soares não só registrou boletim de ocorrência contra a advogada como também a denunciou à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Paranaguá.

Soares teve a execução antecipada de sua ação indenizatória contra a Petrobras, pelo acidente do navio Norma, sacada da Caixa Econômica Federal em outubro de 2012. Eram R$ 7.905,10. Antes de fazer o BO e a denúncia à OAB, Soares foi ao escritório de Cristiane e, com uma câmera escondida, perguntou se ele tinha algum valor a receber. A secretária do escritório disse que não havia nada.

A Gazeta do Povo teve acesso a um total de 30 processos registrados apenas com as iniciais dos clientes. A maioria das procurações assinadas pelos pescadores nestes processos têm apenas o nome da ilha ou do bairro onde moram. Mesmo assim, a reportagem encontrou 20 deles. Destes, 18 não sabiam da existência das ações, muito menos da concessão de parte das quantias pedidas. Ao todo, além de João de Deus Cunha, doze pescadores já prestaram queixa contra Cristiane por apropriação indébita e estelionato.

Procurada várias vezes, a advogada Cristiane Uliana não quis falar com a reportagem. Ainda no ano passado, quando procurado pela primeira vez, o presidente da OAB-PR, Juliano Breda, disse que a instituição é intransigente contra qualquer tipo de apropriação indébita e que iria investigar o caso. Procurado novamente neste ano, Breda preferiu não comentar o assunto.

Filhas de pescadores recorreram à prostituição

No Litoral, não é raro ouvir histórias de adolescentes que recorreram à prostituição para sustentar a família após os acidentes ambientais. Um pescador que pediu para não ser identificado desabafa à Gazeta do Povo que viu sua filha recorrer à prostituição para sustento da casa. "Na época da fome, minha filha mais moça não aguentou ver a mãe passando fome, sem ter dinheiro pra comprar arroz, sem ter peixe pra comer. Para trazer comida pra dentro de casa, ela se submetia a se deitar com caminhoneiros que vinham carregar no Porto de Paranaguá. Eu e a mãe dela sabíamos que ela se submetia a isso, mas não falávamos nada. Nem ela falava também. Tinha que ser assim", diz.

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