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Igor Joaquim de Matos, em foto tirada seis meses antes de sua execução pelo narcotráfico | Reprodução
Igor Joaquim de Matos, em foto tirada seis meses antes de sua execução pelo narcotráfico| Foto: Reprodução

A vida sob ameaça

Rafael* parou de estudar na 5ª série, mora com a mãe e o padrasto na periferia de uma capital da região Sul. No tráfico de drogas desde os 13 anos, hoje, aos 16, está sob proteção da Justiça. Ameaçado pelos traficantes, a quem servia como aviãozinho, já escapou três vezes da morte em seis meses. Primeiro, levou uma facada na mão ao proteger o rosto, depois ficou um dia amarrado a um poste de luz e um mês depois ficou três dias amarrado a uma árvore. O medo agora é acabar igual a um amigo de infância, decapitado.

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No domingo em que seria decapitado, Igor Joaquim de Matos manteve a rotina de vida descartável. Não lhe dera qualquer temor a notícia, um mês antes, da cabeça cortada de um rapaz e exposta em praça pública. Mas em que momento a morte dele poderia ter sido evitada? A pergunta fustiga desde aquele fatídico 28 de setembro a diretora de projetos da Fundação Nosso Lar (FNL), Ivânia Ferronatto, que o acolheu 51 vezes num intervalo de 21 meses. Poder-se-iam atribuir unicamente a uma criança as escolhas que a levaram a uma morte trágica e prematura? Ao fim deste texto, que esboça uma biografia de Igor, será possível vislumbrar algumas das mãos que o degolaram.

Igor nasceu na favela Morenitas, uma das mais violentas de Foz do Iguaçu. Não conheceu o pai; e a mãe, garota de programa, o abandonou aos três meses de vida. Aos 7 anos perdeu o avô, sua única referência paterna. Analfabeta e sem fonte de renda, a avó, Natalina, colocou Igor e o irmão, Tiago, dois anos e meio mais velho, para vender salgados na favela. Igor tomou gosto pelas ruas e passou a se aventurar pela cidade engraxando sapatos e vendendo CDs. Queria ganhar dinheiro para jogar vídeo-game em alguma lan house. Foi nessa ocasião o primeiro atendimento do Conselho Tutelar, em 14 de agosto de 2003.

A partir daí foram ao menos 30 passagens pelo Conselho Tutelar e 51 pela Fundação Nosso Lar, de onde fugia tão logo fosse internado. No vaivém das ruas, se afeiçoou a um educador do SOS Criança, em quem via a figura paternal do avô. Mas o educador mudou de profissão e Igor se viu órfão outra vez. Nunca passou do primeiro ano do ensino fundamental, mas era carismático e fluente no espanhol aprendido nas ruas. Algum tempo depois, apareceu na Fundação Nosso Lar com um argentino disposto a adotá-lo, o que nunca aconteceu porque a profissão de vendedor obrigava o homem a se ausentar com frequência, por longos períodos.

Igor teve novo alento às vésperas de completar 10 anos, quando a mãe reapareceu. "Ele estava feliz, saía dizendo pra todo mundo ‘encontrei minha mãe, encontrei minha mãe’", diz a avó. Eliana trouxe dois dos três filhos tidos na Argentina e, mesmo sem a atenção que esperava da mãe, Igor parecia feliz. Mas essa felicidade não durou oito meses. Eliana desapareceu com os filhos argentinos, sem dizer palavra. O novo abandono bateu mais forte. "Igor piorou, ficou mais revoltado", conta a avó. Envolveu-se cada vez mais com as drogas. Natalina não via nem a sombra do menino que um dia queria ser policial para matar bandidos. Estava virando um deles.

Os relatórios das psicólogas e assistentes sociais da Fundação Nosso Lar descrevem os últimos dois anos e meio de Igor. "Menino desobediente, terrível", são as descrições em 24 de março de 2006. Entrou nos móveis, abriu as torneiras, pulou o portão, voltou, tentou enforcar o irmão, trepou na casa, sujou as paredes, chutou a porta, jogou pedras na psicóloga. Só sossegou à noite. Na manhã seguinte, impedido de pegar uma faca para ferir o irmão, usou um garfo de churrasco para espetá-lo. Sem conseguir, rasgou a própria camiseta. Dez minutos depois, sentou na mesa e almoçou como se nada tivesse acontecido.

No dia 26, acordou às 6 horas já aprontando. Sujou a casa toda e fugiu no fim do dia levando junto um coleguinha albergado. Em 3 de agosto, fala que gostaria de ser adotado pela vizinha Ivone, que se manifestou favorável à ideia. Já no dia 18, a avó e a tia dizem que não querem ficar com Igor e Tiago, mas o juiz da Vara da Infância e Adolescência determina que a avó deve cuidar das crianças e a encaminha para o programa de guarda subsidiada. Numa sucessão de idas e voltas, em 3 de outubro Igor foge de casa levando a bicicleta da vizinha.

Em 5 de fevereiro de 2007, a avó e a tia falam mais uma vez em desistir dos meninos. Ao fim de longos meses sem registros, em 26 de setembro sai a guarda subsidiada e a avó passa a receber um salário mínimo para cuidar de Tiago. Igor reclama que o dinheiro é só do irmão. Em novembro, a equipe técnica descobre que Igor voltou para a escola. "Porém, está sem tomar Ritalina e por isso está muito inquieto". Em dezembro, Igor falou às técnicas do interesse em morar com uma tia numa cidade do interior. Disse que queria mudar de vida, mas em Foz não iria conseguir.

No início de março, Natalina mostrou-se preocupada, pois Igor vivia nas ruas, não ia à escola e não dormia em casa. Ele estava usando cada vez mais drogas. Duas semanas depois, diz que Igor andava muito alterado, ameaçava o irmão com uma tesoura, saía com roupas boas e voltava com roupas velhas. No dia seguinte, a avó liga para a Fundação avisando que Igor chegou de madrugada "extremamente drogado". O Conselho Tutelar tentaria autorização judicial para interná-lo para desintoxicação, mas na cidade não há clínica para crianças.

No dia 25 de março Igor se abriu e disse estar ameaçado de morte por roubar uma bicicleta e R$ 60. Disse não ter medo. Devolveu a bicicleta, mas gastou o dinheiro em cocaína. Falou que gostava de jogar vídeo-game no shopping e estava trabalhando na gráfica de um homem que o levava para passear e ajudava com roupas e calçados. Recusou a desintoxicação alegando não ser viciado. Contudo, dois dias depois reapareceu, pediu para não ser levado para casa, chorou e pediu tratamento. Fugiu em seguida, mas, encontrado na rua, foi levado a uma comunidade terapêutica, de onde foge no início de abril.

Uma semana depois, sai a autorização para o internamento. As assistentes sociais o encontram em casa, com uma mochila de roupa, pronto para ir com um tio a uma cidade do interior. Sob efeito de drogas, abre a porta do carro a caminho da internação e pula. Sobe no teto de uma escola e foge, reaparecendo uma semana depois na FNL, sob efeito de drogas, falando alto e babando. Falou do envolvimento com drogas e armas, dos "amigos" da favela que o protegem e do sonho de ser chefe do tráfico. Não quis ir com o Conselho Tutelar. Subiu pela antena até o telhado, desceu à sacada e dali pulou ao chão.

Em visita domiciliar da equipe da Fundação, dia 18 de abril, Natalina diz que está a ponto de largar tudo e sumir. Até mesmo Tiago abandonou a escola e a igreja que frequentava. Em outra visita, em 19 de junho, a equipe descobre que Tiago usa drogas com mais frequência e passou 18 dias preso por transportar lança-perfume. Disse estar com medo, pois se envolveu com gente barra pesada. No início do mês seguinte, em nova visita domiciliar a equipe descobre que Igor está fora de casa há mais de 15 dias. A avó soube que ele está vivendo como mendigo nas ruas da Favela Monsenhor Guilherme.

Em nova visita domiciliar, dia 15 de agosto, as assistentes sociais o encontram assistindo televisão em casa. Estava com os pés calejados e sintomas aparentes de abstinência da droga. Ignorava os técnicos da FNL e só respondia à avó. Três semanas mais tarde, Igor é levado à Fundação. Estava sonolento, sujo, muito magro e drogado. Falava enrolado, se encostou na mesa e dormiu. Antes, havia dito que não queria ir para casa. Foi levado ao Conselho Tutelar para posterior internação, mas fugiu. No dia 15 de setembro, foi visto nas ruas, sujo e drogado. Não quis voltar para casa. No dia 28 seria encontrado decapitado.

Três acusados estão presos, um de 15 e outro de 16 anos. Segundo o delegado Fábio Renato Amaro, responsável pelo caso, eles desconfiavam que um grupo da Favela Morenitas quisesse dominar o tráfico na Favela Monsenhor Guilherme. Capturado, Igor foi executado às margens do Rio Paraná, na fronteira com o Paraguai. O trio deu um tiro de escopeta calibre 12 na cabeça, recolheu o corpo que caíra na água, cortou a cabeça com uma faca, desovou o corpo no rio e a cabeça, posta num saco de ração para cachorro, foi levada por um dos adolescentes num moto-táxi até um parque na fronteira com a Argentina, perto da favela onde Igor morava.

Muitas outras mãos seguraram o cabo dessa faca. "De alguma forma, todo mundo contribuiu para a morte dele", diz a diretora da Fundação Nosso Lar. A lista de culpados é extensa: começa com o pai e a mãe que o abandonaram, o abrigo que não acolheu de maneira eficiente, a administração pública que não ofertou creche, a escola que não soube segurá-lo em sala de aula, as pessoas que compraram os salgados e CDs que ele vendia, mantendo-o nas ruas. "A criança vai para a rua porque a rua a mantém, e quem mantém a rua é a sociedade".

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