Anderson Krenak, de 32 anos, está de pé numa rocha cinza desvelada pela seca. Do alto, pode enxergar, na água cor de barro, o reflexo do próprio tronco pintado de preto e da lança de pau de braúnaque carrega na mão. O rio o faz ver o pai José Manoel ensiná-lo a nadar aos 6 anos. Tia Beja colher cidreirinha nas margens para preparar chás. A tarrafa apanhar cascudos que, na adolescência, lhe dariam os primeiros trocados. A mulher, Nayara, sorrir ao finalmente explorar as águas sobre as quais ouvia histórias de antepassados na infância passada em São Paulo. Se é límpido o passado espelhado no Uatu — Rio Doce, na língua borun —, a imagem do futuro está turva como a água.
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Leia a matéria completa“Desse jeito, o rio não dá água para beber, peixe, banho. Talvez não dê nunca mais”, hesita, para em seguida arriscar o que o Doce representa para os Krenak, cuja aldeia fica em Resplendor (MG): “É um membro da nossa família”.
A onda de rejeitos arremessada ao Rio Doce pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério em Mariana (MG) vem causando destruição ao longo de mais de 500 quilômetros e agonia em pessoas cujas existências coincidem com a vida do rio. Habitando suas margens, testemunharam 66 pontes serem erguidas, peixes abundarem em redes, cheias arrastarem carros, nadadores inábeis se perderem na correnteza. Construíram lares, criaram filhos, encheram quintais de plantas.
A mancha alaranjada que vem avançando com a onda de rejeitos de minério lançada pelo rompimento de uma barragem em Mariana começou a invadir o mar do Espírito Santo ontem. Depois de percorrer mais de 500 quilômetros ao longo do Rio Doce, a massa de água alcançou a foz durante a tarde. Hoje, deve ficar ainda mais turva. Inicialmente, a mancha alcançou o oceano pela barra norte da foz, como previram mais cedo técnicos da prefeitura de Linhares que sobrevoaram o distrito de Regência mais cedo. A abertura foi alargada com auxílio de retroescavadeiras durante a manhã.
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Quando o rio se obstina a destruir plantações a cada cheia ou seca, Elton e o meeiro que vive na ilha há dois anos, Alziro Barros, de 69 anos, perseveram. Roçam o mato, plantam mudas. Da casa antiga, sobrou um fogão. A nova foi erguida sobre uma base de concreto sustentadas por colunas com dois metros de altura. “Essa lama vem com o carcará, matando tudo”, compara Alziro: “Vou sair da ilha por uns dias, mas volto quando ela passar. Aqui moro com Deus e os periquitos que vêm me visitar.”
Ocupar-se de plantas e de animais é rotina para parte dos que vivem com o rio. É neles que Abdo Claudino, de 73 anos, inspira versos que falam de Regência, vila na foz do Rio Doce — onde a lama chegou ontem. Já plantou árvores em seu quintal apenas para atrair passarinhos e ouvi-los cantar, assegura. Morador antigo do distrito de Linhares, ele evoca os tempos em que agitação ali era assistir o Juparaná, barco a vapor, subir e descer o rio, na primeira metade do século passado. Meninos fugiam de casa apenas para ver desembarcarem mercadorias e passageiros. “Eu era novinho; hoje nem canoa direito passa mais”, diz o senhor que, depois da morte do pai afogado, jamais molhou mais que os pés no rio.
Foi uma imagem capturada no Rio Doce que aproximou Vanilde Maria Guimarães, de 72 anos, do falecido marido Mario Nunes, morto há nove anos. Na foto, em que a então adolescente aparecia de maiô ao lado de amigas normalistas, chegou às mãos dele por uma amiga. Concordou em devolver o retrato apenas depois de recortar a jovem loira colatinense por quem se apaixonara. Um tempo depois começaram a namorar.
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