Até o fim deste mês, vai desaparecer oficialmente um dos poucos endereços da Avenida Visconde de Guarapuava, na altura do Água Verde, de onde ainda não brotaram espigões, restaurantes japoneses e lojas de modulados de cozinha. Fica na esquina da Coronel Dulcídio, em frente ao Instituto dos Cegos, está avaliado em R$ 2,4 milhões e traz na soleira além de placas de "vende-se" um letreiro amarelado pelo tempo: "Associação Católica dos Ramos da Caridade Dispensário São Vicente de Paulo da Associação das Senhoras da Caridade". Em anexo, o local abriga o Pensionato São Vicente de Paulo e suas últimas 16 hóspedes, protagonistas de uma pequena batalha judicial que envolveu a Cúria Metropolitana, a Associação Internacional das Caridades (AIC) e o Ministério Público.
O prédio plantado num terreno de 1.832 metros quadrados, é um dos 19 endereços na capital que abrigam atividades da Associação Internacional das Caridades (AIC), nome com o qual passaram a ser chamadas as "senhoras da caridade", hoje uma ONG de 260 mil membros em todo mundo, 3,6 mil apenas no Brasil. Como é um instituto leigo e filantrópico desde que surgiu na França do século 17 o AIC criou, em 1958, um pensionato capaz de gerar renda para sustentar as obras de caridade da instituição em Curitiba.
O pensionato tinha capacidade para cerca de 30 hóspedes, não necessariamente idosas nem necessariamente pobres. Entre suas inquilinas mais famosas estiveram Estelita Fontoura, mãe do ator Ary Fontoura, morta em 2003, quando faltavam dois meses para completar 100 anos; e a atriz global Suzana Arruda, a dona Florzinha da novela "O Bem-Amado". A localização dos sonhos e o preço das mensalidades (de R$ 490 a R$ 850) teriam feito com que muitas moradoras fossem envelhecendo ali. Segundo a direção, houve até quem alugasse a casa própria ou deixasse os seus e se mudasse para o local. Não deu outra: passou a ser confundido com um asilo. Foi o princípio da confusão.
O que ninguém poderia imaginar era que por trás da aparência de fortaleza do Dispensário estava um castelo erguido na areia. O terreno da Visconde pertence à Cúria Metropolitana. A cessão para as "damas da caridade", como também eram conhecidas, deu-se em 1941. Reza a lenda, nunca faltaram imobiliárias e interessados em comprar o terrenão nas barbas do Batel. Sempre sem sucesso. Nos anos 2000, a Mitra não só passou a reivindicar seus direitos ao patrimônio como decidiu vendê-lo para aplicar o dinheiro na compra de um novo seminário já adquirido, na Avenida Iguaçu e em projetos de 23 pastorais.
A propósito, a tomada de posse não enfrentou resistências das administradoras da AIC, apesar das lágrimas que rolaram no término das atividades, em 11 de dezembro último. Por uma razão muito simples: assim como a maioria dos movimentos religiosos católicos, as voluntárias cujo primeiro grupo surgiu em Curitiba no ano de 1900 reviram suas estratégias para o século 21 e arquivaram o assistencialismo paternalista que caracterizava as "caridades" de antigamente. Há três anos, as voluntárias do AIC tornaram público que precisavam desativar o pensionato que emprega cinco funcionárias, serve três refeições diárias e exige cuidados 24 horas.
"A casa é velha e basta estourar um cano para que a gente perca o controle do orçamento. Acabamos mais ocupadas com a manutenção do prédio do que com a caridade", constata Vera Lúcia Nunes Bohn, há seis meses na presidência da AIC e há cinco servindo na associação.
A notícia do fechamento oficializada em 29 de setembro último , claro, quase pôs abaixo antes da hora a sede da AIC, seguida de protesto de parentes das moradoras e gente batendo na porta do Ministério Público. O caso foi parar nas mãos da procuradora Márcia Nakajo Pereira, com a alegação de que a associação e a Cúria estariam ferindo o Estatuto do Idoso. "Virou um quebra-cabeça", lamenta Orlette Pereira, vicentina desde 1979 e ex-presidente da AIC.
Na Cúria reina ainda hoje uma certa indignação com os rumos tomados pela história. Para o padre Luiz Alberto Kleina, procurador da Mitra da Arquidiocese, todos os expedientes foram cumpridos, incluindo uma ajuda de custo de R$ 5 mil paga cada uma das 16 pensionistas.
O Ministério Público permanece na dianteira do processo, assim como a Fundação de Ação Social (FAS) órgão da prefeitura de Curitiba, a quem coube investigar se o Estatuto do Idoso estava sendo negligenciado e se havia risco social para as moradoras. Uma das tarefas foi avaliar os 30 endereços indicados pela Cúria para que as pensionistas fossem transferidas. Nenhuma irregularidade foi apontada. Segundo o MP, para que o acordo seja homologado, o único documento que ainda falta é o relatório da FAS assinando embaixo que as transferências foram realizadas e as senhoras devidamente instaladas em outros locais.



