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Angolanos deficientes visuais estão há 14 anos no Brasil e vivem sob ameaça de terem de retornar ao país de origem | Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
Angolanos deficientes visuais estão há 14 anos no Brasil e vivem sob ameaça de terem de retornar ao país de origem| Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Impasse

Paraná concedeu bolsa, mas deixou de pagá-las

Em julho de 2009, o governador Roberto Requião criou, por meio da lei 16.167, uma bolsa-auxílio para que os cegos angolanos que estivessem estudando regularmente se mantivessem no Paraná. Segundo os jovens, no entanto, no ano seguinte o benefício deixou de ser pago. A ajuda – equiparada a um servidor comissionado 7-C – giraria em torno de R$ 1,5 mil. O Serviço de Inclusão e Atendimento aos Alunos com Necessidades Educacionais (Sianee), da Uninter, se mobiliza para que as bolsas voltem a ser pagas pelo governo estadual.

"Seria um dinheiro importantíssimo, que os ajudaria a se manter aqui, enquanto ainda não podem trabalhar. Vamos brigar por isso", diz a coordenadora do Sianee, Leomar Marchesini.

Um decreto baixado em 2010 pelo governador Orlando Pessuti (n.º 7502) estipula condicionantes para que os angolanos recebam o auxílio. Segundo o Sianne, desde então, mesmo os que cumpriam os requisitos deixaram de receber o benefício. "O pagamento passou a ser irregular, até que todos pararam de ganhar o dinheiro", relembra Leomar.

O governo do Paraná diz que a bolsa foi paga regularmente até 2013, quando houve um atraso no repasse do auxílio. A demora ocorreu, segundo o governo, por um trâmite administrativo, porque a responsabilidade do pagamento foi transferida da Secretaria de Estado do Trabalho para a Secretaria de Estado da Justiça.

Em novembro do ano passado, a bolsa voltou à competência da pasta do Trabalho. O governo assegura que "o pagamento será realizado, conforme previsto em lei".

Em casa

Bom humor reina na "repúblicas dos cegos"

Apesar dos poucos móveis – uma grande mesa na copa, camas e guarda-roupas nos quartos – o sobrado localizado no bairro Mercês chama a atenção pela organização. Ali, vivem cinco cegos angolanos, ameaçados de deixar o Brasil. Locomovem-se com plena autonomia. Os lances de escada que levam ao andar superior – onde ficam os quartos – e ao ático não parecem ser problema para os jovens. Estão familiarizados com cada cantinho do imóvel.

"Sem a visão, desenvolvemos outros sentidos. Não é difícil. A gente cria um mapa na cabeça. Sabemos onde estão os obstáculos. É tranquilo", comenta Jacob Cachinga, que chega a subir correndo a escadaria.

Como em qualquer república, as atividades são divididas. Prudêncio Tumbika e Rui Fonseca são apontados como os melhores cozinheiros. É pela gastronomia, aliás, que o grupo mata um pouco das saudades de Angola. O Funje – prato que lembra uma polenta, com molho apimentado – é uma unanimidade.

"É difícil haver briga entre a gente. Se alguém está bravo comigo, saio de fininho. A pessoa não está vendo, não vai me achar mesmo", brinca Prudêncio.

O bom humor parece ser uma presença constante, quando o grupo está reunido. Seja nas partidas de dominó, nas rodas de música ou nos intermináveis bate-papos. Outros bons companheiros também são os celulares e os notebooks, por meio dos quais esses angolanos de Curitiba se conectam com o mundo. Com a ajuda de aplicativos para cegos, navegam por mídias sociais e sites de notícias.

"Existe essa tensão por causa da pressão do consulado. Mas, fora isso, levamos uma vida normal. Não somos coitados, tristes. Somos independentes. Brincamos muito um com o outro", sintetiza Jacob.

  • Grupo espera permanecer no Brasil e conquistar o direito de trabalhar
  • Jacob Cachinga ao lado de Prudêncio Tumbika, o mais brincalhão do grupo. Parte dos angolanos vive em um sobrado localizado no bairro Mercês
  • Isabel Yambi gosta de usar roupas com motivos africanos
  • Delfina Américo está a um ano de se formar em pedagogia
  • Prestes a concluir o curso de direito, Isabel Yambi quer consolidar carreira no Brasil
  • Isabel Yambi, na república do Mercês
  • Estiloso, Jacob Cachinga ostenta tranças feitas pela colega Delfina e sempre usa óculos escuros
  • Jacob Cachinga é estudante de educação física e professor de dança
  • Detalhe do colar de Jacob Cachinga
  • Jacob Cachinga, em frente ao quarto que ocupa. Rui Fonseca caminha no cômodo vizinho
  • Mais jovem do grupo, Rui Fonseca tem 21 anos de idade. Chegou ao Brasil aos sete anos
  • Rui Fonseca, na sacada de seu quarto
  • Os lances de escada do sobrado não são obstáculos aos jovens
  • Delfina Américo
  • Grupo confraterniza na copa
  • A partir de aplicativos para deficientes visuais, jovens usam celulares e navegam na internet
  • Maurício Dumbo checa uma nova mensagem recebida via WhatsApp
  • Ao teclado, Maurício Dumbo toca
  • Maurício Dumbo e seu teclado. Jovem também é estudante de direito e foi convidado a integrar a seleção brasileira de futebol de cegos
  • Delfina Américo se preparando para sair
  • Estudante de jornalismo, Prudêncio Tumbika faz locuções e imita celebridades da tevê
  • Prudêncio Tumbika pede para ser fotografado e faz pose

Isabel Tchicoco Yambi gosta de se vestir com roupas que remetam à África. Dessa forma, sente-se mais próxima da Angola, sua nação. Mas é pelo tato – e não com os olhos – que ela escolhe as peças de seu armário. Isabel perdeu a visão ainda criança. Desde 2001, mora em Curitiba, com um grupo de outros nove cegos angolanos. Todos estão sob risco de ter de regressar, por pressão do consulado do país africano, que quer deixar de pagar as bolsas com as quais os jovens se mantêm por aqui. E eles querem ficar.

"Chegamos com idades entre 7 e 10 anos. Passamos a maior parte da vida aqui. Todos estudamos, fazemos faculdade e queremos nos formar e ter independência", explica Isabel, que acaba de concluir o penúltimo ano de Direito.

As ameaças de repatriamento se tornaram ultimato em 20 de novembro, quando dois representantes do Consulado Angolano procuraram o grupo e decretaram: o convênio seria rompido e os jovens teriam que voltar a Angola. Eles deixariam de receber as bolsas (cada um ganha R$ 1 mil, para custear parte do aluguel e despesas pessoais) e teriam que embarcar ao país de origem no começo de 2015.

"[Os representantes do consulado] disseram: ‘Não tem conversa. Está decidido. Podem espernear’. Não nos deram nenhuma justificativa", conta Prudêncio Jeferson Tumbika, que iniciará em 2015 o terceiro ano de Jornalismo.

Cegueira

Os angolanos vieram ao Brasil 14 anos atrás, por intermédio da ONG angolana Fundação Eduardo Santos (Fesa). Todos eram cegos – a maioria perdeu a visão em decorrência do sarampo. Angola vivia sob a turbulência de uma guerra civil e, aqui, seriam educados.

Por dez anos, moraram no Instituto Paranaense de Cegos (IPC): passaram pela alfabetização, tiveram aulas de AVD (Atividade da Vida Diária) e de informática, concluíram outros cursos e praticaram esportes. Desde 2011, moram em duas repúblicas: uma na Mercês, outra no Bairro Alto.

Permanência

Os dez angolanos portam um visto de cortesia, concedido pelo Itamaraty e válido até abril de 2015. Com esse documento, não podem trabalhar ou constituir empresa. Dependem da bolsa e do auxílio dos amigos.

A Defensoria Pública da União entrou com um pedido de permanência a todo o grupo. Com esse benefício, poderiam exercer atividade remunerada.

Paralelamente, o Centro Universitário Uninter – onde sete dos angolanos estudam – também se mobiliza para que os jovens possam permanecer no Brasil. A faculdade vai entrar com um pedido de nacionalidade brasileira aos angolanos, com base no artigo 12.º da Constituição.

A Gazeta do Povo tentou contato com o Consulado da Angola, mas as ligações não foram atendidas.

Apelo

"A gente quer trabalhar", dizem africanos

Trajando roupa social, Maurício Dumbo toca ao teclado "Dança Kuduro". Ao seu lado, igualmente bem vestido, Jacob Cachinga se requebra, acompanhando a melodia. Sentado à mesa, Prudêncio Tumbika só para de cantar para imitar o apresentador Fausto Silva: "Ô, louco, meu. Direto da Angola". Nas duas casas em que vivem é assim: música o tempo todo.

Os jovens – que formam o grupo "Cantores de Angola" – anseiam pela permanência, com a qual poderiam trabalhar no Brasil.

Até se formarem – todos frequentam cursos superiores – a música seria a principal fonte de renda. "Hoje, recebemos muitos convites para shows e apresentações. Mas não podemos cobrar por isso. Nós queremos ter o direito de trabalhar", conta Jacob Cachinga.

Talentos

Além disso, os jovens têm outros talentos. Jacob é professor de dança. Só pelo ruído dos passos, sabe se aluno está errando o movimento ou dançando fora do ritmo. Chegou a lecionar, como bolsista, na escola Edson Carneiro. Isabel Yambi concluiu curso de telefonista. Maurício é craque no futebol de cinco (o futebol de cegos). Já recebeu convite para integrar a seleção brasileira, mas, como ainda não pôde se naturalizar, permanece fora do time. "Eu sou como o Ganso [jogador do São Paulo]. Jogo fácil", diz Maurício. "Nunca vi o Ganso jogar, mas é o que dizem", completa.

"O que a gente quer é poder ficar no Brasil e trabalhar, conquistar nossas coisas a partir do nosso trabalho. Quem sabe, lá na frente, voltemos à Angola para visitar nossa família", diz Isabel.Os cegos de Angola

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