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Cristovão Tezza

Do Oiapoque ao Chuí

Minhas certezas patrióticas de infância foram se esfarelando uma a uma. A primeira é a própria idéia de "pátria", que nos meus anos de formação se confundiam com algo criminoso, uma usurpação, uma desculpa esfarrapada. A adolescência é a fase mais marcante da vida – e foi justo na minha adolescência que a ditadura militar se implantou no país. Por uma rede de influências e significados sociais em que me vi envolvido, criei uma desconfiança bruta de toda a imagem oficial do país. Países são entidades mais ou menos inventadas pelo tempo e pela história, sustentadas pelo aparato de Estado e depois consolidadas por uma espécie poderosa de um silêncio que consente – não há tempo de pensar nisso; apenas sobrevivemos aqui e agora.

E, é claro, a poderosa liga social que nos une desde que nascemos, a partir da comunhão da lingua, dali à vizinhança comum e a todos os traços culturais que absorvemos pela vida afora, vai como que criando um país verdadeiro, aquele que de fato vivemos e que realmente conta. Apesar de meu impulso anarquista, reconheço que não inventaram nada melhor do que a base do Estado moderno laico para a sobrevivência comum das pessoas. Ainda que, de fato, ninguém tenha a escolha de viver ou não sob sua tutela – as opções seriam, quem sabe, naturalizar-se indígena em Roraima ou obedecer ao traficante da esquina. A sombra do Estado tem um peso equivalente ao de um DNA na nossa formação, de tal forma que às vezes se imagina que ele seja não uma criação da cultura humana, mas a expressão inexorável de um destino ao qual não temos o mais remoto acesso, como nos pesadelos de Kafka.

Lembro de um professor da infância que, para mostrar a incrível unidade brasileira, repetia sempre essa pérola maravilhosa de ambigüidade: "No Brasil, quando dá o jacaré, dá o jacaré do Oiapoque ao Chuí!" Não é um espanto? Um país que se define orgulhosamente pela sua contravenção cotidiana. Criança, fiquei sempre com aquele Oiapoque ao Chuí na cabeça e com a mágica maravilhosa do jogo do bicho que nos unia todos os dias. Depois, sempre me disseram que no Brasil não tinha racismo, violência ou terremoto – são tantas as nossas qualidades que quando começa a cair a ficha de que há algo errado, parece que o erro é nosso; e, às vezes, como o atleta olímpico que falhou, até pedimos desculpas à Nação, sintetizando num gesto de obediência a força do Estado que com ela se confunde, como se o atleta fosse antes um funcionário que um cidadão. Num Congresso de Literatura em Santiago de Compostela, anos atrás, fiquei surpreso com o impulso separatista dos galegos de afirmar a própria nacionalidade na Espanha pós-Franco, e dali a se constituírem como Estado. É como se a mitologia da velha tribo que bate no peito ancestral dos homens tivesse de encontrar guarida mesmo num mundo em que sua lógica familiar não faz mais sentido.

Cristovão Tezza é escritor.

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