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Para comemorar minha nova vida de autoaposentado, resolvi fazer uma estante, num dos surtos que me batem para me devolver o equilíbrio perdido nas brumas deste mundo cruel. Tudo que é natural é bom – e comecei a procurar madeira verdadeira, e não dessas chapas prensadas que pa­­ra ficar em pé exigem um pacote de falsificações plásticas, de modo que sejam de montagem rápida, barata e substituível, já que se esfarelam na primeira mudança.

Trabalhei uma vez com araucária, mas agora a ideia me deixou com sensação de culpa. Fiquei satisfeito com o cedro que me ofereceram, belas tábuas cortadas de acordo com um projeto desenhadinho a capricho. Senti orgulho da obra imaginária. Sempre há diferenças milimétricas, eu sei, porque a natureza é indócil, as tábuas vergam e trabalham, as trenas são caprichosas em suas tensões imperceptíveis, a espessura das peças jamais é a mesma – trata-se, digamos, de polegadas ideais, que o belo e afinado serrote que comprei, mais ouvindo o som do metal que conferindo o fio dos dentes, tem de retificar aqui e ali na sua mordida indiferente. É duro fa­­zer o corte seguir a reta euclidiana tão bem riscada na madeira. Einstein tem razão, concluo, pondo a culpa nos outros: a reta é uma curva.

Parafusos: diante deles, penso no gênio de Da Vinci, que pelo simples conceito chegou a um helicóptero. Como sou um camponês de segunda mão, preciso do engenho da furadeira, que me facilite a arrancada da rosca. E descobri como é difícil achar parafusos adequados para madeira, os que volteiam até o fim, o que mostra o quanto essa profissão está em baixa nesse mundo no qual – a frase é de Marx – tudo que é sólido desmancha no ar. Claro que mãos acostumadas a virar pá­­ginas sofrem para romper a resistência da madeira, e em pouco tempo os esparadrapos de proteção já fazem parte do meu pacote profissional.

Apesar de tudo, a obra avança. Com ela, cresce a taxa de irritação, na semana mais quente da história de Curitiba – a punição é completa, o sal do suor impregna-se nos pequenos cortes das mãos e braços que a imperícia afoita vai riscando na pele. Mas há compensações pelo sofrimento: as prateleiras começam a ficar parecidas com a ideia original, e antes de re­­clamar do prumo da madeira, re­­clamo do prédio, todas as paredes fora de esquadro – ou será essa bolha do nível que tem defeito?

O projeto vai sofrendo emendas e ajustes – melhor fazer a estante naturalmente inclinada para a parede, para evitar surpresas; essa fresta pode ser preenchida com massa de madeira; um parafuso suplementar aqui re­­­solve o que parece um erro de con­­cepção; talvez uma mão francesa, oculta com engenho e arte, resolva o equilíbrio que o mundo real se recusa a me dar.

Pintada com sabor imbuia – o último truque – eis a estante. Olhando desse ângulo, até que ficou boa. Com o suspiro feliz, a decisão: melhor encerrar por aqui minha carreira de marceneiro.

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