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Esmagado pelos poderes da civilização – cabeças decepadas no Maranhão transmitidas digitalmente e reproduzidas um milhão de vezes em um bilhão de traquitanas, aplicativos, telinhas & telões, facebooks, além de um mar de rolezinhos de shoppings transformados em hordas de trotskistas vingadores pelos sem-cabeça de Brasília –, resolvi fugir de Curitiba e descer à praia, agora que a hecatombe do fim de ano, sem água, já havia passado. Fui visitar meu amigo lagarto, o pequeno sauro que há 60 milhões de anos transita ali pelas Gaivotas e Caravelas, com aquele ar enfadado de velho filósofo, desconfiado como uma mosca e imóvel como uma rocha. Ele já viu de tudo nessa vida. Desconfio que na verdade seja uma lagarta disfarçada, porque apareceu um lagartinho e os dois andam quase sempre juntos, ainda que, oferecendo-lhes um ovo – que eles devem imaginar seja de um pterodáctilo, já que, como crianças modernas, nunca viram uma galinha viva na vida –, a lagartona tenha sempre a preferência, restando só as cascas para o filhote lamber. Acho que é por isso que sobreviveram tanto: primeiro os mais velhos, de modo a manter a ordem natural das coisas. E só cheguei a essa conclusão, é claro, porque estou ficando velho.

Um velho avô, aliás. Porque, além do lagartinho no quintal, tem outro aqui dentro de casa, ainda com menos de 60 dias, que por acaso é meu primeiro neto. Chama-se Antônio e ainda não fala, o que dificulta saber o que ele deve pensar do que está vendo com aqueles olhos atentos. Mas, com certeza, presta muita atenção no avô, provavelmente impressionado com a minha experiência de vida. Ou apenas pelos óculos, como sugeriram aqui em torno, disfarçando o riso, que eu finjo não perceber. Na verdade ele já começou a falar, criptográfico – são sons acompanhados de gestos misteriosos de braços e pernas, seguidos de súbitos silêncios e olhinhos concentrados no que está na frente, aos quais eu respondo com sons marcianos, bilus e grumps, tchuc-tchuc-tchuc, que às vezes ele chega a ripostar com o que parece um sorriso, complementado com um breve e agudo grito ninja. Devolvendo-lhe a chupeta caída, que ele tentava alcançar em gestos irritadiços, acalma-se imediatamente e se transporta a um templo zen, os olhinhos fechando lentos, ouvindo algum "Om" da terra do sonho, para onde ele segue tranquilo, agora imóveis as miniaturas de pernas e pés e braços e mãos e dedinhos.

Mais tarde, irrompe num berreiro assustador, a boca escancarada como num desenho animado. E é nesse momento que percebo as vantagens de ser avô. Os pais imediatamente assumem o comando do pequeno ser, irascível e exigente, que sem nenhuma palavra consegue colocar todo mundo a seu serviço, como a um príncipe. Enquanto os pais fazem o serviço sujo, trocando fraldas, o avô apenas filosofa sobre a passagem do tempo, contemplando lagartos.

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