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Costumo me definir, com relação ao domínio de orientação geográfica, essa intuição que todo mundo tem para ir de um lugar a outro, como um caso exemplar de "cretino topográfico", uma ex­­­­pressão que dá um certo toque científico à minha simples in­­competência espacial. Se algum dia eu for sequestrado, o que es­­­pero jamais aconteça, nem será preciso colocar capuz na minha cabeça. Mesmo que eu mantenha os olhos bem abertos o tempo todo, jamais seria capaz de voltar para casa baseado apenas no que vi.

Quando eu ando a pé, isso não é exatamente um problema. Como vivo em Curitiba há 50 anos, já consegui gravar na me­­mória um bom pedaço da cidade, e, por tentativa e erro, acabei decorando o caminho mais curto entre minha casa e alguns lu­­gares-chave, como a universidade, a Boca Maldita, dois supermercados, a arena da Baixada, uma videolocadora e três padarias. Lembro de alguns bares também, mas como tenho saído pouco de casa nos últimos anos muito provavelmente não vou mais encontrá-los onde eles costumavam ficar na minha cabeça. A memória do passado, entretanto, é cristalina: sei exatamente onde ficam os cines Avenida, Ar­­le­­quim e Condor, a Velha Ade­­ga, as lojas Hermes Macedo e Prosdó­­cimo, e uma pequena agência de correios da Barão de Cerro Azul – o problema é que nada disso existe mais. Parece que me sinto mais em casa numa cidade fantasma do que na cidade real.

Mesmo assim, permanecem alguns buracos negros, profundamente resistentes, desde a infância. Subindo do centro em direção ao Alto da Glória, a geografia é segura até o Grupo Es­­colar Zacarias, que frequentei por um ano. Mas avançando em direção ao Couto Pereira e dali de­­sembocando naquela rede pentacular de cruzamentos, que começa no estádio e vai até uma fronteira difusa do Hospital São Lucas, no alto Juvevê, estou completamente perdido. Há bons restaurantes na região, amigos moram por ali, mas cada viagem à região é atraso certo. Todas as ruas parecem tortas. Para dobrar essa ou aquela esquina, sempre confio numa placa que não está mais lá, numa casa verde que derrubaram ontem, num bar que não existia e que agora aparece súbito e cheio de gente – nesses momentos tristes, o cretino topográfico sente a tristeza metafísica daqueles que nunca estarão no lugar em que pisam, consultando mapas inúteis e correndo contra o tempo.

Mas as coisas podem ser piores: quando estou de carro. Eu sou aquele sujeito que provoca invariavelmente uma buzina irritada, no difícil momento de decidir se devo virar aqui, à direita, ou se é melhor passar o segundo sinaleiro e virar à esquerda, porque a ou­­tra avenida tem sentido centro, ou o contrário. Tal­­vez um bom treinamento seja pas­­sar uma tarde de sábado tentando estacionar em shoppings, uma tarefa ideal para forçar o nosso lado zen-bu­­dista. Não me arrisco – prefiro almoçar em Santa Feli­­cidade no Dia das Mães. Pelo me­­nos esse caminho eu conheço bem.

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