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Acabo de ler um livro extraordinário: O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura, que é ótima literatura e um thriller fascinante. Seguindo uma densa fidelidade aos fatos, reconta a história de Ramón Mercader, o militante que cumpriu a tarefa de assassinar León Trótski, o "renegado comunista" refugiado no México no fim dos anos 1930, depois de sofrer uma encarniçada e sofisticada perseguição da máquina de terror de Josef Stalin. Do ponto de vista literário, o romance é uma equilibrada composição de pontos de vista que em nenhum momento derrapa no esquematismo político, ou, o que seria pior, no proselitismo – é obra de um escritor que concentra na tensão complexa das relações humanas o foco do seu texto. E, não por acaso, até publicar esta narrativa histórica que se tornou com toda justiça um sucesso internacional, Padura era conhecido como autor de livros policiais. Digo "não por acaso" porque, afinal, a história do assassinato de Trótski é substancialmente uma intrincada história policial que se lê, página a página, como se já não soubéssemos do fim.

Ao lado do atormentado painel político do tempo, colocando em cena a Guerra Civil Espanhola, o avanço do nazifascismo e os assassinatos de Stalin nos expurgos alucinados que consolidaram seu poder absoluto, o romance mergulha na cabeça de Ramón Mercader, desvelando o processo de formação de um fanático. Não uma bucha de canhão qualquer, mas um "diamante lapidado", como o catalão Ramón. Enquanto os homicidas de Stalin, à cabeça do serviço secreto, se sucediam no comando das deportações em massa e assassinatos políticos aos milhares – primeiro Guenrik Iagoda, depois Nikolai Yezhov e, enfim, Lavrenti Béria –, azeitava-se a fantástica máquina de doutrinação política comunista que, no mundo inteiro, com inacreditável sucesso, domesticou a seu serviço desde rebatedores ideológicos, como Luiz Carlos Prestes no Brasil, até filósofos de ponta, como Jean-Paul Sartre na França.

Sobre este fundo, o romance avança também pelos sutis meandros freudianos que se deixam entrever na alma do personagem central em sua relação com a mãe, a revolucionária Caridad Mercader, que a propaganda transformou na "passionária catalã". Em outro fio da meada, assumindo o papel do belga Jacques Mornard, Mercader "apaixona-se" pela militante Sylvia Ageloff, de modo a ter acesso a Trótski. E a ponte cubana que recupera a história esquecida (Mercader morreu em Havana, em 1978) está presente na figura contemporânea do personagem narrador.

Como toda boa obra de ficção, O homem que amava os cachorros põe à prova hipóteses de existência, agora sob o fascínio da realidade inverossímil que se tenta decifrar, nas sombras nunca suficientemente iluminadas dos horrores do século 20. O próprio Padura, o livro revela, é habitante e testemunha dessas sombras renitentes.

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