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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Faz parte da mitologia da literatura a guerra de escritores contra editores, estes personificados como inimigos figadais do verdadeiro talento, e aqueles como anjos puros em defesa dos valores da arte. Essa imagem de bandidos insaciáveis explorando gênios indefesos nasceu e se cristalizou na Europa, na passagem do século 18 ao 19. Consequência da Revolução Industrial, os livros desceram do Olimpo em que se mantinham, com escritores rodando a bolsa pelos salões e dependendo do patrocínio da nobreza, e se tornaram mercadoria preciosa de circulação na burguesia urbana, ávida por se ilustrar. Autores de romances, publicados no formato de folhetim, eram disputados a tapa. Mas nem de longe havia a consciência de "direito autoral".

Editores eram, de fato, tubarões que tratavam autores a pão e água. O patrono daquele momento po­­­­­de­­­­­­ria ser o editor russo Stelóvski, que, em troca de adiantar 3 mil ru­­­­blos a Dostoiévski – perseguido por credores, explorado por parentes e sofrendo ataques epiléticos –, exigiu um livro novo num prazo curtíssimo. Se Dostoiévski fa­­­­lhasse, teria de entregar ao editor toda a sua obra, passada e futura, du­­­­­­­­­rante nove anos, em troca de nada.

Não parou por aí: quando Dostoiévski terminou na penúltima hora sua obra-prima O jogador, graças a Ana Grigórievna, a estenógrafa com quem se casaria em seguida, o editor desapareceu para não receber os originais. Duas horas antes de acabar o prazo, desesperado, Dostoiévski depositou o romance numa delegacia de polícia, contra recibo, para comprovar que cumprira os termos do contrato. Os terríveis vilões dos romances de Charles Dickens são café pequeno perto do realíssimo Stelóvski.

Esse panorama felizmente mudou no século 20, seguindo um processo natural de profissionalização no Primeiro Mundo. Mas a transformação foi bem mais lenta nos países periféricos, em geral com um público leitor menos significativo. No Brasil, exceto por figuras raras como Jorge Amado ou Erico Verissimo, o padrão de sobrevivência dos escribas, até pouco tempo atrás, era o do escritor funcionário público, vivendo de salário do Estado e publicando seus livros em condições ornamentais. A literatura brasileira sempre floresceu com um pé no Estado.

Nos últimos 20 anos, a situação mudou. Hoje, os contratos brasileiros são muito melhores que os estrangeiros (o que em parte, mas só em parte, se explica pela tradicional irrelevância literária do Brasil no resto do mundo). E os míticos Stélovskis se deslocaram das editoras para o controle dos processos de distribuição, inclusive dos livros digitais, área fundamental em que se trava uma batalha secreta por padrões de formato e domínio da venda. Por exemplo: a Apple acaba de impedir que se comprem e-books em sua tabuleta, via aplicativos de livrarias, sem pagar pedágio. A taxa é de 30%, digna de um Stelóvski.

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