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Um dos maiores pânicos da minha vida de cronista é, súbito, secar a inspiração. É também o clássico medo de todo escritor, é verdade, mas escritor não tem prazo. Posso ficar cinco anos sem publicar, e se enxeridos me cobram alguma coisa – "E daí, o novo livro?" – eu minto que a nova obra "vai bem", mesmo que não tenha escrito uma linha. A demora do escritor tem o seu charme. Sempre quis ser um escritor difícil, inacessível, cheio de mistérios e truques na manga, mas tudo que faço é me virar do jeito que dá.

Mas crônica tem tamanho, data de entrega e endereço certo. O texto pode ser conversa fiada; o compromisso não. E o tempo vai passando. Hoje ainda é quinta-feira, e já sinto o vazio pela frente. É o maldito senso de responsabilidade curitibano. Estou em Boa Vista, Roraima, onde jamais estive antes. Pela janela do hotel vejo uma manhã ensolarada, casas simpáticas em meio ao verde, e no horizonte uma cadeia de montanhas que, cretino topográfico, imagino que é a fronteira do Brasil com a Venezuela. Talvez seja a Guiana – qual delas? Posso conferir na internet, mas me refugio na ignorância. A única coisa certa é que estou duas horas a menos de Curitiba. Vocês já estão almoçando e eu fiquei só com a fome. Daqui a pouco alguém vem me buscar rumo ao desconhecido. Claro, vai dar tudo certo – vou falar sobre literatura com a plateia da 20.ª Feira do Livro de Ro­­raima (pronuncia-se "Roráima") e depois certamente terei assunto para uma pilha de crônicas.

Mas sempre guardo um texto coringa para situações de emergência. Há mais de um ano escrevi uma crônica sobre pessoas que falam alto ao celular, tornando pública a vida privada, uma praga contemporânea. O assunto é batido, o texto ficou sem graça, o título é roubado de Rubem Braga ("Vivendo em voz alta"), mas a crônica vem há 400 dias rolando como pau de enchente, ganhando um adjetivo aqui, perdendo uma conjunção acolá, no esforço suado de tentar melhorá-la. Toda quinzena reenvio o patinho feio à paciente redação da Gazeta, com eternos pedidos de empurrar a coisa para a frente, como reserva: vamos que eu não consiga mandar a crônica da semana em tempo? Usa-se o estepe.

Hoje eu achei que iria, finalmente, queimar o coringa. Acor­­dei com uma preguiça monumental, depois de uma viagem comprida – como é grande esse Brasil! Terça que vem, despacho enfim o "Vivendo em voz alta", decidi corajoso. Dar um fim na­­quilo. O que me criou de imediato um vazio sobressalente – e de­­­­pois? Lá se iria o último cartucho. Todos iriam perceber. Achei que uma crônica não publicada, ar­­ras­­tando-se na sombra, perseguida sem piedade pelo próprio au­­tor, é um assunto muito me­­lhor e mais misterioso do que ela própria queimada à luz do sol e dos olhos do leitor – e conservo, precavido, meu estepe de segurança. Como eu disse, tudo que tenho feito é me virar do jeito que dá.

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