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No verão de 1970, fui convocado e me apresentei ao Exército no quartel da Praça Rui Barbosa, a vetusta fortificação derrubada na década de 80. De seu imponente e medieval portão, se avistava o extinto Teatro de Bolso, última visão do recruta antes de adentrar ao que hoje conhecemos como "os porões da ditadura".

As primeiras palavras para ilustrar a visão daquele portão de entrada vêm de Dante Alighieri: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate (Deixai toda esperança, vós que entrais). Mas, para lembrar das sombras da ditadura, os versos introdutórios do Inferno de Dante nos levam a outra visão daquele quartel: O voi ch’avette li ‘ntelletti sani, / mirate La dottrina che s’asconde / sotto ‘l velame delli versi strani (Ó vós que tendes inteligência sadia, / atentai à doutrina que se esconde / sob o véu dos versos estranhos) – Dante, Inferno, IX, 61-63.

Era véspera de Copa do Mundo e tocava no rádio a marchinha do "País que vai pra frente", entoada com orgulho dentro e fora dos quartéis. Principalmente dentro, nas formaturas de rotina e nas doutrinas no auditório militar, quando os recrutas recém-chegados aprendiam que o Brasil esperava de seus filhos e soldados, nada mais, nada menos, que um ultimato: "Ame-o ou deixe-o!".

Só fui dispensado daqueles muros dez meses depois, carregando na bagagem a visão assustadora dos soldados da Polícia Especial do Exército (PE) escoltando uma fileira penumbrosa de homens caminhando perfilados aos muros, em direção de não se sabia onde. Mas se sabia porque, e ninguém se atrevia a perguntar por quê.

O que se murmurava era que o técnico João Saldanha teria sido demitido pelo general-presidente e Pelé estava ficando cego. Cegos éramos nós, recrutas, que não víamos (ou fingíamos não ver) tudo o que se passava nos porões do quartel. Mas não éramos surdos, e do alto das guaritas todos ouviam ruídos estranhos à cidade em volta; e não eram ruídos dos leões do Passeio Público, bem distante dali. Eram ruídos estranhos!

Outras perguntas, me faço só agora. Por que, com tantos solertes inimigos da pátria a rondar os quartéis, ainda se usavam na época armamentos herdados da Guerra do Paraguai? Só quem patrulhava o entorno do Quartel-General, onde hoje é o Solar do Barão, há de lembrar (e eu lembro!) o que se passava no coração e mente de um soldado armado com um velho fuzil emperrado, quando estourava uma bomba de São João no Largo da Ordem.

Quarenta anos depois, desde quando o tenebroso portão do quartel da Praça Rui Barbosa nos advertia com os versos de Dante, ainda me pergunto na Semana da Pátria: "Por que o serviço militar obrigatório?".

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