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Antes e bem antes, dona Helena, 82 anos, residente numa vetusta casa do Juvevê, não precisava dos filhos, netos e bisnetos para lhe alegrarem os dias. Bastava-lhe uma assistente e o velho piano Essenfelder. No dia a dia, o trabalho era lidar com as partituras. Das que faltavam, pedia ao seu fiel provedor, o motorista de táxi: "Radiotáxi, boa tarde!" "Por favor, aqui é a dona Helena, pode pedir para o seu Antônio passar na Casa Sartori e me trazer a partitura de Rhapsody in Blue, de George Gershwin?" "Pois não, dona Helena! Ele já leva!"

Seu Antônio dirigia o táxi mais cult da cidade. Nele se ouvia, além de Gershwin, Liszt, Jobim, Pixinguinha, obras dos irmãos Morozovicz. E dona Helena vivia dando dicas de novos CDs para o seu motorista de estimação.

Num sábado, fim de tarde, a filha mais velha de dona Helena telefona, preocupada: "Mamãe, por que a senhora não vende essa casa enorme e compra um apartamento no Champagnat?" "Champagnat vírgula, minha filha. É Bigorrilho!" "Tá bom, Bigorrilho! É um belo bairro e a senhora não vai ficar assim tão distante das amigas do chá." "Não insista! Daqui não saio, daqui ninguém me leva pra longe dos meus sabiás." "Mas, mamãe... a cidade está cada vez mais violenta. A senhora bem sabe que não adianta contar com o 190. Eles são umas tartarugas!" "Meu bem, peça a sua pizza que a minha comida japonesa acaba de chegar pelo radiotáxi. Um beijo nas crianças, tchau!"

A filha tinha e não tinha razão.

Dona Helena estava ao piano interpretando Rhapsody in Blue, quando sentiu algumas notas dissonantes numa janela dos fundos. Pé ante pé, foi ver o que se passava pela janela de seu quarto, no segundo andar. Eram três assaltantes tentando arrombar a janela da cozinha. As antigas casas vizinhas, agora escritórios de advocacia, fizeram-na lembrar das palavras da filha: "A senhora bem sabe, não adianta contar com o 190! Eles são umas tartarugas!"

Se o número da polícia não funciona – pensou dona Helena –, talvez outro número funcione... E ligou para o radiotáxi: "Meus queridos, três indivíduos estão tentando entrar na minha casa pela janela da cozinha. Por favor, mandem um táxi urgente pra me socorrer!"

Não deu nem cinco minutinhos, apareceu não apenas um táxi para tirar dona Helena daquele apuro. Da noite surgiram dezenas de táxis. E na noite embrenharam-se os três meliantes.

Dona Helena está vendendo a casa no Alto da XV. De uns tempos pra cá vive insegura e sem novas partituras. A Casa Sartori não tem mais partituras, seu Antônio se aposentou e os táxis não atendem mais como antes. Nessa Curitiba com uma farmácia em cada esquina, táxi nem para remédio!

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