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O presidente Lula, na semana passada, saiu em defesa do senador José Sarney (PMDB-AP) – sobre quem pairam inúmeras suspeitas de mau uso de recursos públicos e de leniência em relação aos desmandos que acontecem no Senado. "O Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum", disse Lula, se referindo a uma suposta injustiça da imprensa contra o presidente do Senado.

A declaração de Lula poderia ser apenas mais uma dentre tantas que o presidente dá todos os dias. Mas ela merece ser analisada com um pouco mais de cuidado, pois revela a forma de pensar de Lula e, indiretamente, da classe política do país.

A partir da fala do presidente, pode-se concluir que Lula acredita que há dois tipos de cidadãos: os "comuns" e os "especiais". Estes últimos, em função do cargo que ocupam, mereceriam tratamento privilegiado em relação aos "comuns". Coincidentemente, na avaliação de Lula, é um político quem não merece ser tratado como as pessoas "comuns" – ou seja, como nós, simples cidadãos pagadores de impostos.

Nada poderia ser menos republicano do que esse raciocínio. Afinal, o princípio elementar de todas as democracias é a igualdade de todos perante a lei. Mas, infelizmente, esse pensamento permeia nossa classe política e é razão principal da corrupção que assola o Brasil.

Chama ainda mais a atenção o fato de a declaração ter sido dado por alguém que nasceu pobre e "comum". Mas, embora Lula viva em pleno século 21, parece pensar como um homem da Idade Média – quando o privilégio de classe era a regra social.

O processo histórico que levou o Ocidente às modernas democracias, aliás, começou naquela longínqua era medieval, quando o poder absoluto do rei da Inglaterra começou a ser atenuado pela criação do primeiro parlamento da História, no século 13.

Mas, mesmo no Parlamento inglês, sempre houve uma divisão social entre elite e povo. O poder parlamentar ao longo dos séculos era exercido de um lado pela nobreza e pelo clero, representados na Câmara dos Lordes; e do outro por todos os demais cidadãos sem título nobiliárquico, que tinham assento na chamada Câmara dos Comuns.

Desde então, a história da democracia inglesa, inspiradora de outras tantas mundo afora, é a história da conquista do poder pelos "comuns". Hoje, o rei ou a rainha não tem poder decisório e os lordes contentam-se com funções limitadíssimas. Quem efetivamente governa o Reino Unido é a Casa dos Comuns, que escolhe o primeiro-ministro dentre um de seus integrantes.

E, ainda que os atuais deputados britânicos não estejam honrando o seu Parlamento, com escândalos de mau uso de recursos públicos muito semelhantes aos do Congresso brasileiro, a histórica solidez da democracia inglesa baseada no poder dos "comuns" não deixa de ser simbólica. Lá, por sinal, os principais políticos envolvidos nas denúncias – as piores em 200 anos da política britânica – já estão caindo. Por aqui, contam-se os escândalos por dias e quase ninguém é punido. Temos, enfim, que avançar alguns séculos de história para cortar os privilégios dos nossos "lordes".

Fernando Martins é jornalista.

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