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Silvia Calciolari

Quero morrer em paz

Está cada vez mais difícil e complicado administrar a vida. Espera-se que ao menos na hora da morte encontremos a paz. Mas em Curitiba, a coisa não tem sido assim. Por conta da criminalidade e da ausência de entendimento entre os poderes constituídos para garantir segurança pública para todos, uma "orientação" da administração local prevê que os velórios sejam interrompidos à meia-noite para se evitar assaltos no entorno das capelas e cemitérios municipais. Sob o banal argumento de que não se responsabiliza pelos danos causados, o Estado promove uma "pausa" na vigília e na dor de familiares e amigos, que só podem recomeçar o velório com segurança na manhã seguinte.

E aí o show de horrores fica mais bizarro e torna agudo o desrespeito à humanidade que ainda sobrevive em nós. As coroas de flores são guardadas, as luzes apagadas e as portas trancadas. E o corpo permanece dentro da capela "protegido", em muitos casos só. Para o Estado e a burocracia racional e impessoal, não importa se é morto de "morte morrida" ou "matada", jovem ou velho, pobre ou rico. A morte é isolada, enquanto os que ainda têm um resto de vida permanecem do lado de fora, na calçada, acatando sem condições emocionais de resistência a "orientação".

Vivi essa situação com o falecimento de uma querida amiga e confesso que fiquei horrorizada, indignada e nauseada com a tamanha falta de respeito do poder público com a morte e tudo o que ela representa para as diversas crenças – não importando ser o começo, o meio ou o fim. Fico imaginando como tem sido a "vida" das famílias curitibanas que ao badalar da meia-noite são obrigadas a, literalmente, abandonar seus entes queridos no último momento do corpo presente. Tudo por conta da insensibilidade e da "racionalidade" de uma burocracia que não consegue se organizar para garantir a paz na hora da morte. Já tinha lido na internet há pelo menos dois meses algo sobre essa prática em nossa cidade. Mas, lamentavelmente, é da natureza do ser humano tomar consciência somente quando sente na pele.

Ao nascer, o homem faz uma "compra casada". Vida e morte são adquiridas compulsoriamente e a consciência dessa realidade é o que nos distingue dos seres irracionais. Ponto final. Não tem mais, nem menos; nem prorrogação, nem repetição. Me pergunto o que precisamos fazer para mudar essa situação e garantir a volta do respeito aos mortos, a sua história e memória de cada um, que no fim das contas é nossa também.

O caminho em sociedade tem sido o da busca da paz social, da tolerância com o outro e consigo mesmo e, quiçá, da conquista de um pouco de felicidade, já que o resto é inevitável. Da minha parte, quando chegar minha hora eu quero morrer em paz na minha cidade, com "choro e vela", assim como era no princípio e por todos os séculos.

Silvia Calciolari é jornalista.

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