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Embora ele, Natureza Morta, tenha optado solenemente por só depor em juízo, acabou confessando que geralmente não acorda com o "espírito de flor de cerejeira", como ocorre com o jornalista Franklin Martins. E que ficou surpreendentemente alegre com o clarear do dia na sexta-feira passada. A construção ao lado da mansão na Vila Piroquinha é um incômodo que se renova há mais de um ano, já que são quatro prédios de seis andares e até agora só dois foram concluídos.

Pois não é que, para seu espanto e posterior deslumbramento, numa pausa do barulho infernal um dos operários começou a assobiar a Marselhesa? E não foi um trechinho não, assobiou o hino inteiro, bem alto, sem tropeços ou vacilo. Da varanda, Natureza ficou torcendo para que os demais operários aderissem à manifestação, formando um "coro" crescente e freneticamente explosivo no final. Tal qual em Casablanca. Encerrada a brilhante apresentação, aplaudiu mentalmente o nobre operário, quase gritando bis.

Como ele mesmo diz, esse mundo não tem porteira – e é desconcertante. De volta à xícara de café, lembrou, e não sabe explicar a razão, da cena que considera magistral, talvez a mais genial do cinema. Em 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, o astronauta Dave Bowman (Keir Dullea), em profundo silêncio, faz uma solitária e pausada refeição. Era – o ato de se alimentar, e com prato e garfo – a única coisa essencialmente humana que ainda restara na estação espacial, que acabaria sob o total controle de Hall 9000, o supercomputador. Aliás, seria tão somente um supercomputador? Bom, mas saindo do cinema e voltando à Terra, ainda sob o efeito da Marselhesa operária, folheou Mediação, a excelente revista do Colégio Medianeira. Nela, que tem a coordenação editorial de Nilton Cezar Tridapalli e Luciana Nogueira Nascimento, topou com as lições de Carlos Renato Moiteiro. Professor de Filosofia e Sociologia, em Filosofia, um exercício do cotidiano, ensina que "somos os agentes da construção da realidade em que vivemos". E, entre o nós e a essência das coisas, cita Roberto Gomes (Crítica da Razão Tupininquim), para quem filosofia é "a tentativa de enxergar um palmo adiante do nariz – o que não é tão fácil nem tão inútil quanto muitos pensam. Afinal, frisa, o peixe é quem menos sabe da água".

De fato, e mais, recorrendo agora ao Beronha: só peixe morto acompanha a correnteza. Moiteiro abre a matéria mostrando uma tira de Calvin e Haroldo, de Bill Waterson: na escola, conta o angustiado Calvin, teve de decidir se colaria na prova ou não. E discorre sobre o seu drama do "cotidiano moral" – pensou: colar numa prova não é pra tanto, não prejudica ninguém. "No mundo real, às pessoas interessa o êxito, não os princípios." Acabou o tempo e ele entregou a prova em branco.

Haroldo tenta minimizar a angústia do amigo:

– Podes tomar isso como uma vitória moral...

– Bem, me parecia errado colar em um exame de ética, arremata Calvin.

E os dois personagens saem de cena, em direção ao horizonte, no quadrinho final.

Dez, nota dez. Extensiva ao operário em construção.

Francisco Camargo é jornalista.

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