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 | Foto:Brunno Covello/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto:Brunno Covello/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O Chevrolet Kadett 1900-e-bolinhas da catarinense Katia Horn, 49 anos, está com o pneu furado. Dia desses, que diacho, ela teve de tomar um táxi. O chofer de praça, tolinho, não percebeu que por trás daquele rostinho que parecia vindo de fria aristocracia teutônica se escondia uma mulher dada a altas piruetas emocionais – uma Mata Hari que dança rumba para turistas escandinavos. Foi divertido, como de resto, sempre que ela está na área.

Ao puxar assunto, o taxista se esmerou em soltar desaforos contra os ciclistas, crente de que ia encontrar plateia naquela mulher emplumada por cabelos brancos. Para quê. Pareceu uma pegadinha. Ela lhe passou um sabão, mas rimado e de improviso. Tema: cuidar do outro é um barato. “O senhor cuida do ciclista e eu cuido do senhor, que tal...” encerrou, antes do bater da porta do carro, sorriso de 90 dentes, nariz de charmosas pregas, dando tchauzinho. Puro jazz em prosa. Em horinhas de descuido, as mil sardas de miss Horn ganham 50 tons de ferrugem.

O taxista mal sabia, mas estava num vernissage móvel. Aquelas sardas eram pintura

Sentiu-se como se tivesse encarnado uma daquelas vetustas alemãs da pequena Luzerna (SC), onde nasceu. Precisamente dona Terezinha Dolores, sua mutter, um tipo tão original que poderia substituir Fernanda Montenegro na série Doce de Mãe. Mas nessas horas, sobretudo, Katia se sente quem é – uma artista plástica peculiar, que manuseia as palavras como se fossem argila. Sua matéria-prima: o encantamento. Profissão: encantadora. Existe?

Difícil explicar, inclusive para ela, que teve de recorrer aos préstimos de uma terapeuta. Ambas passam bem. Até então, dava-se por satisfeita com o rótulo que lhe creditaram por 25 anos – o de performer. Quem canta, dança, interpreta, faz cenografia, poesia, ilustração, gastronomia, museologia, jardinagem é... Na falta de palavra melhor, ficou com essa mesma. Mas já deu.

Katia saiu da barra da calça dos pais aos 22 anos. Partiu pelo simples motivo de que “estava doida para escafeder de Luzerna...” Foi estudar artes em Dourados (MS). Poucos anos depois, desembarcou em Curitiba, cantinho que escolheu para chamar de seu. Ruivíssima e dona de um impagável humor de salão, subverteu as expectativas e logo virou “de casa”. Poderia muito bem dizer que tinha nascido no São Francisco, passado a infância no Bacacheri. Ninguém duvidaria.

Até que integrou a trupe de Hélio Leites, o performer, assumindo-se como “adorável estranha”. O encontro estava escrito. Leites-Horn dividiram em maior ou menor escala umas tantas interferências artísticas cuja marca era a ausência absoluta de pretensões à imortalidade: a Escola de Samba Unidos do Botão; a Igreja da Salvação pela Graça – a igreja engraçada; a Lilituc – a menor galeria de arte do mundo; e a luta insana pela canonização de Helena Kolody, a santinha municipal. “Hélio me marcou com o discurso sobre a poesia das coisas insignificantes”, resume. A dupla faria bonito numa Documenta de Kassel, mas a vida não é justa.

No dia em que um crítico de arte se debruçar sobre a obra de Katia Horn, há de encontrar por lá o peso das tais insignificâncias. Não à toa, o legado dela é quase todo imaterial. Nos mais de 20 anos de atividades, seus trabalhos acabaram consumidos pelo vento, como se fosse uma discípula da arte povera (arte pobre) do italiano Luciano Fabro. “Sou bisneta de um sapateiro da Prússia”, brinca como que em busca de uma fórmula mágica para explicar o misto de nobreza e singeleza que pauta sua produção. Usa de espumas, jornais, sapatos velhos, sulfites recortados, tecidos puídos e o que mais couber na palavra quinquilharia. O que a ninguém interessar possa. Sua sala de exposições é a memória dos outros. Uma obra de Horn não se compra, partilha-se com cada um contando o que viu.

Nem sempre essa lógica duchampiana é entendida. Há quem enxergue nela apenas uma artesã habilidosa, dessas que transforma um sapato velho num vaso de flor. Outros não a conseguem perceber sem o Hélio Leites. Outros ainda preferem apostar que por trás dessa montanha-russa há uma Sarah Bernhardt enrustida. Não sei se é o caso, mas o também multiartista Octavio Camargo a convocou para o projeto Ilíada, em que 24 atores encenam Homero. O canto de Horn é o XIII. Surpresa. Em especial porque ela deu sotaque gaúcho ao rei cretense Idomeneu. “Sou do partido da alegria.”

“É performer”, gritariam alguns. [Dedo médio ao alto para eles]. Necas. Não importa o que esteja aprontando, Katia outra coisa não faz senão uma bienal de arte. Só que sua galeria é a rua. O taxista mal sabia, mas estava num vernissage móvel. Aquelas sardas eram pintura. A casa florida do bairro Bom Retiro, onde a deixou, uma obra-prima, dessas que a gente viu, gostou, mas não sabe como se chama.

  • A artista plástica na casa-ateliê do Bom Retiro, dividida com outras criadoras: jardins libertários.
  • A caixa de televisor convertido em objeto duchampiano no jardim: “O pessoal da rua já sacou que aqui é casa de artistas.”
  • Maquiando-se para a sessão de fotos com Brunno Covello, da Gazeta do Povo: “Tudo o que faço é pensado como arte. Demorei a me dar conta disso.”
  • No quarto que lhe serve como ateliê: de Hélio Leites aprendeu a perceber a poesia dos objetos insignificantes.
  • Sapatos velhos se convertem em vasos. Katia Horn já decorou um a igreja, para um casamento, só com pares de calçados abandonados.
  • Na pasta, desenhos e gravuras - perto de completar 50 anos, artista prevê uma espécie de renascimento. Depois de mais de duas décadas fazendo de tudo um pouco, o desejo é por uma produção autoral.
  • Katia no ateliê: nos últimos cinco anos, deixou descansar a ação criativa junto com os irmãos, a “Família Horn”, para reforçar a própria voz.
  • Na casa do Bom Retiro. Ali, Katia produz cenários - no momento, para um espetáculo do encenador Renato Perré. E se prepara para o monólogo Ilíada Canto XIII, com direção de Octavio Camargo.
  • Com flores nas mãos: as múltiplas habilidades vieram do aprendizado com a mãe, Terezinha Dolores, e o pai Neri Henrique.
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