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 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima

A banca de revistas do comerciante Gregório de Bem, 62 anos, no bairro Hugo Lange, desmente uma pá de mitos sobre Curitiba. E outros. Comecemos pelos outros. Diz-se por aí, com a boca cheia, que mulher não entra sozinha em banquinha para comprar jornais, nem pagando cachê. O gesto tresloucado equivaleria a sentar numa mesa ensebada do boteco da esquina, rodeada de marmanjos com futum de treino do futebol. Coisa mais antiga, mas tem quem diz. Pois é, os tempos mudaram, mulher entra e sai de qualquer lugar, mas a ideia de que as bancas são espaços tão masculinos quanto as tavernas do século 19 – onde os homens liam notícias e só depois as contavam em casa – permaneceu feito uma craca.

Esse fóssil não vale para a banquinha do Gregório, a "Banca do Bem", como foi apelidada. Mulher não só entra como se abanca numa das cadeiras colocadas à porta do estabelecimento, uma serventia da casa para estimular a sociabilidade. E eis que o segundo mito é derrubado.

Você entendeu direito. Gregório coloca mesas e cadeiras à porta do seu comércio e as pessoas – leia-se "curitibanos" – se sentam para jogar conversa fora, incluindo elas, as gurias, de todas as idades e credos, com jornal debaixo do braço, realizando o gesto mais feminista desde a queima de sutiãs em Atlantic City.

Dia desses, um dos milhares de motoristas que passam do lado da banquinha criou coragem e estacionou. Disse a Gregório que sentia uma pontinha de ciúme daquela turma reunida, rindo e tagarelando como se não houvesse amanhã. Decidiu trocar a tortura do trânsito por uns minutinhos de dignidade. Cena de filme.

Histórias parecidas se repetem vez ou outra, sem limites de lotação, exigência de inscrição ou fila. A confraria da "Banca do Bem" é informal. Não está registrada em cartório, não tem limites de participantes. É só chegar. Experimente. Pelos cálculos do líder, são 25 os convivas "cartão fidelidade ouro", mas tem os satélites – esposas, maridos e filhos que aparecem só vez em quando para um plá. E o advogado René Dotti, na categoria celebridade.

A história da família De Bem com as bancas começou no conturbado 1968. Tempos perigosos. Daqueles dias em diante a turma da repressão invadia as banquinhas, confiscava jornais nanicos e revolucionários, como se catasse muamba. Nos piores momentos, quiosques chegaram a ser explodidos por bombas, uma peraltice de ressentidos, que previam seus dias contados no poder. Dava medo, mas merecia uma manchete: "Bancas de jornal ameaçam a ditadura".

Nesse tempo todo, Gregório se formou em Jornalismo, estagiou na Tribuna do Paraná, mas decidiu seguir aos seus. É dono de banca por convicção. Paga um preço, é claro. Pelas contas, há 40 anos se levanta às 5 da madruga para buscar jornais na distribuidora, o que faz dele um campeão municipal do "sono curto". Não reclama nem boceja na cara da gente. Antes, admite que um de seus maiores feitos – além de perpetuar a mais deliciosa de todas as leituras, a de jornal – foi ter feito de sua banquinha uma comunidade moderna.

Tudo começou em 2004, quando De Bem mudou o "escritório" da popularíssima Praça Tiradentes para os ares dinamarqueses do Hugo Lange. Conseguiu um ponto de 16 metros quadrados, na Rua Itupava, esquina com a ciclovia da Rua Flávio Dallegrave. O local é de fácil acesso pela Germano Mayer e há cantinho para estacionar na Rua Camões. Ali passa o trem, mas Greg já se afeiçoou ao bichão. Nem liga. Quando abre as portas, bem cedinho, tem gente correndo na ciclovia. Tem "bom dia". Nunca fica sozinho. Logo a clientela aparece. Com pressa, recebe jornais, revistas e doces na janela do carro. Nas 200 e tantas bancas da cidade acontece parecido.

Certa vez, um desses fregueses disse que a banquinha bem podia ter um lugar para conversar. "Levei a sério", conta. Primeiro encomendou as mesas e cadeiras. Depois pintou o pessoal, que elegeu, sem pressão, o fim da manhã e o fim da tarde como hora oficial da prosa. Falam de noticiário, mas nada impede um papo furado ou que alguém comente o título da Contigo: "Luíza desiste de Laerte por amor à mãe".

É possível encontrar falantes por ali também em horários alternativos, preferidos por aposentados, babás com bebês e quem mais a variedade humana permitir. "O que manda aqui é a tolerância", jacta-se o nobre De Bem. Diz desconhecer a expressão "freguês chato", uma espécie mais comum em bares, como se sabe, nunca em banquinhas, espaços democráticos onde tão importante quanto encontrar o que ler é falar do que leu. Elementar.

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