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 | Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Num mundo perfeito, não seria preciso apresentar Vera Maria Biscaia Vianna Baptista. Pois é. Ela partiu na manhã da última segunda-feira, dia 9 – vencida pelos ditames da idade. Tinha 89 anos. E, quando todos lhe diziam “não parece”, não o faziam em respeito à vaidade das mulheres ou pelo vício de mentir. Vera era uma força da natureza, no direito e no avesso.

A despeito dos que julgam essa questão irrelevante, convém insistir que o tempo só parecia lhe fazer bem. A pele cor de cuia, os olhos noturnos, os cabelos branquíssimos formavam um mosaico com seu sorriso de constelação. Some-se a esse retrato a voz, no tom exato, de pronúncia irretocável. E a delicadeza, aperfeiçoada nos dois mundos em que andou – o das moças bem nascidas da capital paranaense e o dos caboclos que desbravaram o Norte do Paraná, seus vizinhos por nada menos do que sete décadas.

Deve-se acreditar que por essas e outras tenha sido grata à vida. Além da beleza e da educação, teve seis filhas que não lhe negaram a cepa – Anna Maria, Maria Lúcia, Christine, Vera Regina, Josely e Maria Ângela –, todas ligadas à cultura, nascidas de sua longa união com o homem que amou assim que lhe bateu a vista. Chamava-se Milton Vianna Baptista, era médico, positivista e tinha um it. Entendia que o ofício de curar andava pari passu com uma missão, a de desbravar os sertões. Conheceram-se em 1947, na praia de Caiobá. Casaram-se em seguida, mudando-se em 1949 para a então Vila Primeiro de Maio, nas cercanias de Sertanópolis e Bela Vista do Paraíso, entre cafezais sem fim. Não havia água encanada, luz, telefone, transportes, de modo que não é exagero dizer que o médico visionário e sua mulher resoluta ajudaram a fundar e a inventar o lugarejo que adotaram, sendo, claro, a segunda tarefa mais importante que a primeira.

As amigas colunáveis de Vera podem não ter entendido o que a fez trocar os salões elegantes pelas agruras de uma aldeia onde sua única honraria era ser a mulher do médico, o que implicava em gastar horas dando conselhos no portão. Procuravam-na tanto quanto ao doutor. Mas ela não maldisse a escolha. “Pele”, respondeu, certa vez, ao relatar seu encontro marcado com Milton. É certo que nos verdes anos da união ainda guardava muito da normalista do Instituto de Educação do Paraná, talhada para um bom casamento. Mas logo se tornou coautora da obra humanitária do marido, primeiro como enfermeira e depois como sanitarista, administradora e assistente social. Quando o médico se aposentou, entregue, feliz, à máquina de cortar grama, Vera se recusou a assar bolinhos de fubá e renasceu como escritora e pesquisadora. Passava dos 70 anos.

Tenho para mim que a beleza de Vera tinha a ver com a inteireza de sua vida

Ninguém ainda ousou calcular os quilômetros que a ilustre senhora rodou para estudar em São Paulo e em Curitiba; das tantas vezes que se abalou Nortão afora para captar recursos, não raro batendo na porta dos parentes ilustres. “Diga que quem quer falar com o doutor Rego Barros é a Negra Vera, prima dele”, anunciava-se às secretárias sabotadoras.

É tentador dizer que boa parte das placas das ruas antigas da cidade de Curitiba homenageia antepassados de Vera Maria – Cândido Lopes, por exemplo. Daí sua capacidade quase mediúnica para as genealogias, o que fazia no pulso, sem auxílio de programas da internet. Dois de seus livros – Os curitibanos dos Campos Gerais e A longa viagem perto de casa, sobre os Biscaia – são uma prova disso.

Ao mesmo tempo em que se mostrava perita na feitura de organogramas que indicavam quem se casou com quem e quem é filho de quem – era expert em histórias da vida privada. Narrativas pequenas, delicadas, porém prodigiosas em causar reviravoltas. Ao final de seus relatos coloridos e apaixonados, ouvia de seus interlocutores, encantados, que “aquela história daria um filme”. Na verve de Vera qualquer conversa fiada à beira da Represa do Capivara, onde viveu, tinha um potencial de longa-metragem. Detalhe: não mentia.

De todas as histórias familiares em que se especializou, nenhuma se igualava à sanha de Milton Vianna Baptista, tema do livro que deixou inacabado, Sangrim e sanhaço. Em tempo, sangrim, o pássaro vermelho e ligado na tomada, é ela; o azul e plácido sanhaço, ele. À revelia das diferenças de pressão sanguínea, tinham tal cumplicidade que não raro a imensa prole de filhos e netos se sentia sobrando ao vê-los imersos no universo paralelo da paixão, erguido nas distâncias em que se meteram quando jovens.

Durante pelo menos três décadas – até que o sistema de saúde se burocratizou e corrompeu na mesma medida – Milton fez partos em estábulos, acudiu boias frias em plena colheita, atendeu sem hora marcada e ganhou como pagamento cestas de abacate, laranjas e galinhas deixadas à porta de sua casa. Vera não trajava peignoir. Lia Josué de Castro. Rodava no muque manivelas de geradores dos aparelhos do hospital, instrumentava cirurgias que bem podiam ilustrar filmes de terror e ia além do que era esperado de uma mulher com seis filhas para criar. Fundou, por exemplo, a Apae de Primeiro de Maio, entre outras iniciativas que a aproximavam de uma heroína do cafezal.

Reza a lenda que, em visita à cidadezinha, nos anos 1950, a mãe dela, Eleonora, horrorizou-se em ver a filha vestida tão fora de moda. Os matos, em definitivo, não acompanhavam os catálogos da Casa Canadá. É certo que aceitou cortes de tecido e sugestões para o cabelo, mas sua resposta ao achincalhe não foi sair correndo atrás de uma estilista.

Antes, preferiu aprender a fazer análise de fezes na gurizada da zona rural e, paralelo, comover poderosos e endinheirados para a jornada invisível dos que habitavam o Brasil profundo. Numa das passagens mais saborosas de seu longo idílio pelo sertão paranaense está o dia em que escreveu uma carta ao dono da Alpargatas. Não haveria controle das verminoses enquanto as crianças continuassem andando descalças pelos chiqueiros. A resposta veio quando um caminhão apinhado de pontas de estoque de bambas, kichutes e congas estacionou na pracinha de Primeiro de Maio. Parecia dia de domingo.

Tenho para mim que a beleza de Vera tinha a ver com a inteireza de sua vida. No amor – com Milton –, realizou o que filósofos como Luc Ferry e Alain Badiou entendem como um consórcio mágico, capaz de extrair o melhor de cada um. Na criação das filhas, praticou a máxima anarquista expressa na canção de Gilberto Gil – “o seu amor ame-o e deixe-o viver”. Nas escolhas pessoais, outro bingo. Ao se deslocar da grande cidade, sentou na cadeira de palha, em roda do tanque, com gente que os intelectuais, na maior parte das vezes, conhece só de piração.

Foi do ângulo enviesado do interior do novíssimo Paraná que olhou para o Brasil. E para si mesma. Escreveu um milheiro de memórias, impressões e escarafunchou documentos. Tudo junto forma um testamento no mínimo comovente. O mundo que não a conhece é imperfeito. Será também injusto se não se debruçar sobre o que ela deixou.

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