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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Assisti com atraso à deliciosa comédia romântica A datilógrafa, de Régis Roinsard. Passa-se em 1959. Tem cor a rodo. Mil laços de fita. É puro entretenimento, mas à francesa, o que torna tudo menos suspeito. Não me sai da cabeça oca a "cena da dancinha", ao som de Le tango des illusions, na voz de Jacqueline Boyer. Por uns minutos, temos a impressão de que poderíamos estar lá, dividindo a pista com o antigalã Romain Duris, com a mocinha desbocada Deborah François, passando a mão na cintura de Miou Miou.

Para quem não viu, A datilógrafa trata de um tempo em que ser mulher moderna implicava em conseguir um emprego de secretária. Muitas dessas emancipadas de rabo de cavalo e franja sonhavam vencer concursos de "a mais rápida no teclado", um negócio que hoje soa tão obscuro quanto as corridas de bigas no Império Romano. Enquanto roemos as unhas para saber qual o dedinho mais veloz, tomamos tento de uma cultura quase em extinção – a das máquinas de escrever. Eis o que interessa.

O encanto do filme, se me permitem, não está só no naipe de atores, nem nos exagerados azuis-calcinha e rosas-choques – tão fortes que dão a impressão de que a qualquer momento um escorregador de arroz da marca Flexa vai sobrevoar o cenário. Está nas máquinas de datilografar, merecedoras de um Oscar por sua participação especial.

Caro leitor, essa é minha segunda tentativa de seduzi-lo para a causa da datilografia, essa injustiçada. A primeira foi em novembro de 2012, quando fiz uma maratona pela cidade, atrás de escolas em funcionamento, lojas especializadas e datilógrafos bem empregados. Quase não encontrei alunos, fregueses ou profissionais do ramo, um fiasco. A arte de bater máquina, digamos, não estava vivendo um bom momento.

Devemos reconhecer, contudo, que os ventos mudaram em 2013. Alguns (poucos e bons) episódios deram a entender que a datilografia pode ressuscitar dentro em breve, pondo a perigo o reinado mocho da digitação, corrompido que está pelas teclas "enter" e "delete". Já se fala na volta dos dirigíveis – por que não as Olivettis?

Aos fatos. O romance A máquina de madeira, do paranaense Miguel Sanches Neto, fez bela figura ao tirar das sombras o padre paraibano Francisco João de Azevedo, um homem do século 19, precursor do invento que no século seguinte originaria as Remingtons, Gromas e Hermes. OK. O tom de Sanches é melancólico. Nem dom Pedro II nem seus burocratas reconheceram padre Azevedo. A "máquina" acabou patenteada por outrem, somando mais um item à nossa lista de derrotas tecnológicas, da qual fazem parte a câmera fotográfica e o avião. Mas pelo menos temos algo a ver com a história, o que nos serve de refresco. Que o livro de Sanches seja lido nas escolas – é o mínimo.

Outro sinal de que as "poderosas" pedem remissão. Ano passado, publicou-se uma das narrativas mais emocionantes de que se tem notícia sobre as máquinas de escrever. Seu autor, ninguém menos do que Tom Hanks. Nem Forrest Gump nem Chuck Noland: o astro na vida real é datilógrafo, tem máquina guardada até no porta-malas do carro e é capaz de citar o som de cada marca de sua coleção, como se tratasse de passarinhos raros. Num mundo perfeito, Hanks deveria ser imitado.

Calculo que se o presidente Obama tornasse pública uma paixão por, sei lá, radiolas, viveríamos uma corrida maluca aos mercados de pulgas. Vejam o que ele fez pelos selfies. Hanks não tinha tamanha intenção. Quis apenas expor seu fascínio por utensílios que podem ser jogados de um penhasco, e que ainda assim continuam funcionando. De quebra, deixou nas entrelinhas que há algo no mundo das máquinas de escrever que é inalcançável pelos tolos tec-tec-tec dos computadores: escrevia-se melhor no tempo do tchac-tchac-tchac.

Os micros fizeram do texto uma atividade limpa e silenciosa como um corredor de hospital. É fácil apagar erros, dar sumiço nas frases ruins, esconder as dúvidas, de modo que não sobram provas – nem para nós nem para os outros – de o quanto custou para um texto chegar a ser o que é. Não há a arqueologia das laudas sangradas. Pior: desapareceu a trilha sonora dos espaços de escrita. Faz falta a percussão dos datilógrafos, travando no braço a mais dura das batalhas, a de escrever.

Tudo bem – é janeiro, faz calor, estamos na era Jetson e a velha Royal virou um objeto de decoração. Não tem volta. Mas pelo menos podíamos render nossa homenagem póstuma à era datilográfica "batendo" nem que seja uma carta este ano. Se quiser ser original, escreva ao som de Le tango des illusions. Depois, aproveite para dançar. A ocasião pede.

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