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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Muitos anos atrás, no Rio Grande do Sul, convivi com uma freira de origem italiana. Chamava-se Ana e era tão trabalhadeira que fazia eu me sentir um elefante com dengue: "Coi­­­tada da Gemma, tem um filho preguiçoso", bradou aos céus, certa vez, enquanto me dava de 10 a 0 ao carpir tiriricas num jardim de rosas. Não faço a mínima de quem era a Gemma, mas recordo ter argumentado que seria pior se tivesse um filho assassino ou mesmo mentiroso. Em vão. Para a irmã Ana a desgraça era a mesma, tamanha sua indignação ao flagrar um laivo de moleza em alguém. Suspeito que em segredo aconselhava as lesmas a se converterem em camponesas soviéticas.

Não foi com ela, é verdade, que comecei a matutar sobre o sentimento de culpa trazido pelo ócio. Filho de pais imigrantes – que cruzaram o oceano para trabalhar – aprendi cedo que era vergonha ficar na maciota. Tinha de acordar cedo e nunca deitar sem antes gemer e dizer: "Tô morto", frase que, suspeito, é uma homenagem inconsciente às vítimas da Revo­­lução Industrial.

Àquela época, eu tinha na minha estante uma deliciosa peça de teatro chamada A farsa da boa preguiça, do Ariano Suassuna. Pensei em sugerir à freira como leitura, mas temi ser tomado por um herege digno das fogueiras. Hoje, me arrependo. Talvez Ana tivesse se engraçado pelo Ariano, redimindo-se dos rigores da enxada e dos rosários.

A farsa da boa preguiça me fora apresentado por um padre baiano – Elias Leite, dono de um francês lustroso, dado a atrasos e grande amigo de uma das mulheres mais incríveis deste país – Inezita Barroso. Não raro, fazíamos roda para ouvir na vitrola sua musa caipira cantando "A marvada pinga". E a modinha que diz "eu me vingo dela tocando a viola de papo pro ar", uma ode à pirraça e ao desperdício de tempo. Era o que bastava para que se tornasse nosso ídolo das matinês.

Anos depois, lembrei-me do padre ao ler Canoas e marolas, do gaúcho João Gilberto Noll – um livro sobre a preguiça. Só mesmo um sulista poderia falar desse vício capital não como um folclore caboclo, mas como uma tragédia, cuja maldição é ver a vida escapar entre dedos. O malemolente Elias não passaria da página 10.

Para surpresa, o tema deu de voltar à baila. Acontece em algumas capitais a série de conferências "Elogio à preguiça", proferidas por uma constelação de intelectuais. Em eventos semelhantes, o organizador Adauto Novaes já tratou do olhar, do medo, da paixão. Mas fez agora um grande golaço. Sua escolha mexe com um tabu, tirando a preguiça dos calcanhares dos catecismos para lhe dar um caráter político.

A máxima de Novaes é que somente a preguiça pode nos salvar da tirania das parafernálias tecnológicas, ladras de nossas horas vagas, chupa-cabras do nosso pensamento. De mãe de todos os pecados, ela se tornou uma subversão necessária, com poder de ajudar a escolher o que realmente importa. Espreguicemo-nos. Atiremo-nos à rede – a rede trazida de Salvador.

Não é assunto para discutir assobiando. Como diz Novaes, "a preguiça acaba com qualquer reputação". Assumi-la em público é se tornar um "filho da Gemma". Não consta que em alguma lápide esteja escrito "aqui jaz um preguiçoso". A única vantagem para o falecido seria um velório sem carpideiras dizendo: "Descansou..."

Mas já são horas de rever esses conceitos. Ao lado do desejo e do prazer, a preguiça se tornou uma palavra erotizada e esvaziada de sentido. Sua simples pronúncia invoca calcinhas, cuecas e pernas estendidas na areia – desde que com o aval de uma agência de turismo. Muito pobre, né.

Gosto do que diz a filósofa Olgária Matos: "O preguiçoso é o artesão do vazio". Indolente, ele diz não. Culpabilizado por deuses e homens, toca viola de papo pro ar. Os ponteiros do relógio lhe pertencem. Sugiro receber esse filho pródigo com festa e anel nos dedos. Ele pode nos livrar da sina de ao fazer muito, fazer nada. Que a irmã Ana, lá de cima, não nos leve a mal. Bocejos para todos.

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