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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Conduzindo Miss Daisy é um daqueles filmes que a gente recomenda quando precisa dar um conselho e não sabe o que dizer. Trata da amizade e de como pessoas tão diferentes podem tricotar e cirandar, sem nunca trocarem tiros. Falar dessas coisas é sempre um santo remédio. No caso, as pessoas são Daisy – Jessica Tandy – uma judia rica – e Hoke – Morgan Freeman – um negro na pindaíba. Em comum, ambos contabilizaram mais primaveras do que manda o juízo. E só. Mas ela precisa dele para se locomover de automóvel. O que resulta desse "imperativo da necessidade" é um desses milagres do cinema.Semana atrás, lembrei-me da trama, mas, dessa vez, não para socorrer alguém na fossa. Nem para rir da piada que a impagável Goldie Hawn faz sobre a história em outro longa – a comédia O Clube das Desquitadas. Sua personagem, uma atriz decadente, com boca de pato de tanto botox, fala de suas razões para buscar a eterna juventude: "Em Hollywood, as mulheres têm três idades: gatinha, promotora e Conduzindo Miss Daisy.

Cá entre nós – dá uma gastura danada falar dessa insana gincana da alegria e da mocidade em que nos metemos. Andamos embotocados. Até publicidade de plano de saúde, em vez de usar como modelo um médico azeitado na experiência, prefere surfistas de jaleco com sorriso de galã do SBT. Que preguiça.

Prefiro falar de um camarada das antigas que conheci. Ele me lembra Hoke, o chofer. Saí da conversa que tivemos – numa dessas ruas verdes do São Braz – consolado para enfrentar espinhelas caídas, pés de galinha e os desníveis do abdome. O bom sujeito se chama Waldomiro Bogusz, tem 83 anos e há 60 – isso mesmo, 60 anos – trabalha como motorista da família Paciornik, um dos primeiros clãs judeus a desembarcar em Curitiba.

Miro, como é chamado, calcula que morava em Prudentópolis, sua cidade natal, quando viu um carro pela primeira vez. Era do Dietzel, um rico comerciante. Gamou. Como não tinha idade nem berço para tanto, consolou-se com uma bicicleta. Tempos depois, moço feito, recebeu do Schafranski, seu melhor amigo, o convite para puxar madeira num Ford 1946. Pelo que me disse, nesse momento associou dirigir a ser livre. Passou a desejar as estradas. E acabou arrumando emprego de motorista na fábrica de móveis dos Paciornik, na esquina da Rua Doutor Pedrosa com a Nunes Machado.

O resto veio cantando pneu. Miro – um ucraniano de olhos muito azuis e um papo medido com régua – começou a carregar para tudo o que é lado os irmãos Saulo, Rodolfo e Fran­­­cisco Paciornik. Dez anos depois, com milhagens o bastante, ouviu o veredito: "Você é da família". Pois era. Podia ir trabalhar de chinelas, se quisesse.

Aos poucos, deixou de lado as deferências do cargo: não usa terno, não abre a porta do carro, carrega o passageiro no banco da frente. Do lugar de onde se pergunta "para onde vamos?" viu passar irmãos, filhos e netos, somando três gerações da família, como mostra num surrado álbum de fotografias. "Esse aqui sou eu dançando com Mariana, a noiva. Você já foi a um casamento de judeu?", papeia. Quer saber se já vi um Bar Mitzvah. Conto que não e ganho de troco um: "Você ainda não viveu..."

Enquanto conta suas venturas de agregado – essa figura tão brasileira – fico pensando se Miro, morador de uma casa de fundos, não lamenta ocupar um lugar tão modesto na árvore genealógica dos Paciornik. Ele acha graça e explica que em 60 anos cruzou cidades, falou com gentes e fez consultas médicas gratuitas com o dr. Rodolfo: contava onde doía e ouvia "não tome nada que passa". Passava. Assim tem sido.

Não à toa, chorou a morte de cada Paciornik e teve certeza de amá-los tanto quanto aos irmãos de sangue, Ládia, Esídia, Natália, Laura, Alice e José. Desses, apenas Natália, 92, está viva. Os manos dividem o teto. Juntos, cuidam do papagaio Federico e do preparo do almoço. Vejo-a lavando alfaces, surda e alheia a essa entrevista sobre o nada. Ele a chama de "negra" e pede uma coisa qualquer. Depois se vai, rumo ao Mossunguê ou ao Bigorrilho, a serviço dos patrões – com sorte, desce a Padre Anchieta ou sobe a Carneiro Lobo, as preferidas do viajante.

De noite, conta, mal aguenta esperar por Passione: dorme antes dos primeiros trinados de Irene Ravache – a milionária Clô. "Os Paciornik são mais divertidos" – e se vai para a cama. Ah, continua não tomando nada. "Só Ômega 3. O resto, passa..."

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