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Não sei você, caro leitor, mas de minha parte um dos maiores prazeres da vida é entrar na casa dos outros. Cá com meus botões, suspeito que escolhi o jornalismo para poder provar milhares de vezes a mesma sensação – a de passar da porta para dentro, girando os olhos vesgos da curiosidade. Freudianos que se ocupem de explicar, pois da minha parte é bater palma no portão e pedir licença – se preciso for, passo a mão na fuça do rottweiler e ainda faço graça.

A primeira casa alheia de que me lembro foi a de uma família de negros, no Novo Mundo da infância. Tinha fogão a lenha, o chão de tijolos e ainda posso vê-la em fumaças da memória. A segunda, já na Água Verde, era "dos Car­raro". Os donos não tinham costume de convidar, como manda o protocolo municipal, mas houve ali um velório e ganhei passaporte para circular.

Tinha 6 anos – não me impressionou tanto a nonna falecida com algodão nas ventas, mas as flores de plásticos e as paredes pintadas em cores fortes. Muitos anos depois, dona Cléa, a proprietária, me contou que fora moça bonita e que a chamaram de louca quando se casou com um homem cuja pele estava arruinada pela varíola. Tiveram dois filhos, quatro netos, um quintal cheio de frutas.

Os Carraro já se foram. A casa, vendida faz uns meses. Enquanto não nasce ali um prédio, vejo a cada dia ser saqueada uma porta e uma janela, levando o colorido do que foi por décadas o abrigo de dois operários de fábrica que se amaram na primeira metade do século 20. Impossível não achar triste.

Daí o fetiche – ou que nome tenha – de sondar as intimidades domésticas expressas em toalhas, cômodas e retratos, instrumentos com as quais projetamos, quase em segredo, o mobiliário da nossa alma. Se é casa de artistas – um delírio. A de Liz Szczepanski é uma obra. A de Rodolfo Hey, no Abranches, um elogio ao verbo habitar. A dos mais pobres? Vivem para erguê-las aos puxadinhos, lotando os cômodos com objetos de desejo, de móveis a pôsteres do Fábio Júnior.

As casas antigas são tentações. Sejamos como pagãos. Fui lanchar na Confeitaria Holandesa da Sete de Setembro só para imaginar o pintor Guido Viaro, que ali viveu, comendo uma lasanha com sua Iolanda, num sábado qualquer. Jantei no Chapéu de Pescador, da Ângelo Sampaio, para saber onde viveu o soberbo educador Erasmo Pilotto. Peço a Deus um dia poder entrar nas mansões dos Leão, onde os meus trabalharam nos idos de 1950. E numa casa rosa da Getúlio Vargas, onde recebi um corridão. Eu perdoo.

Tenho cá para mim que deviam colocar plaquinhas nas paredes das casas velhas, oficializando as lembranças: "Nesta sala Alzira cerziu as camisas de Juvenal"; "Nesta cozinha Lúcia fritou bifes para Agostinho". Que tal? Não impediria que fossem abaixo, pois essa é uma batalha perdida, mas saber dos inquilinos nos cutucaria a imaginação, a louca da casa.

Peço que não tome o que digo por assunto cheirando a guardado. É sério. Reli dia desses o belo livro A sociabilidade do homem simples, do sociólogo José de Souza Martins. Num dos capítulos, ele trata de uma pesquisa feita com 180 moradores da Grande São Paulo. Perguntou-lhes o que sonhavam quando dormiam. Batata, um dos sonhos mais frequentes é com a casa onde nasceram.

A primeira casa, escreveu Bachelard, mora na gente. Está tão instalada no corpo quanto o fígado ou o intestino. Lembra da sua? Quanto à casa que construímos com tijolos, não dá outra, é nosso universo. Ali podemos ser nós mesmos esticando as pernas no sofá que nos pertence. Delícia igual só não significa nada para quem andou batendo a cabeça na quina do tanque.

Impressiona a quantidade de bambas que dedicaram miolos à questão – de Witold Rybczynski, Michelle Perrot e Roberto DaMatta a Bill Bryson, autor do irresistível Em casa – uma breve história da vida doméstica.

Nada lhes escapa, da evolução do banheiro e do quarto solitário à curiosidade pelo ninho do vizinho, é claro. Lá, afinal, está o outro. Como eu e você, ele põe ímãs na geladeira. Batamos palmas, acalmemos os cães – que se abram os Sésamos.

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