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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Gosto de lavar louça. Não digo isso com o intuito de que você me convide prum jantar, aproveitando para me brindar com uma pilha de tupperwares em crostas, mas para me exercitar na saborosa arte da inutilidade. Explico.

Dia desses, li um texto do jornalista Marcelo Coelho sobre o "declínio da crônica". Nos jornais de outrora, diz ele, esse gênero se ocupava de temas desimportantes, sobre os quais o leitor não tinha de descabelar o intelecto. Ao final da leitura, restava dizer "pois é", ganhando fôlego para enfrentar notícias sobre os percalços do mundo.

Com o tempo, a pena dos cronistas teria pesado a mão, fazendo de "textos sobre o nada" verdadeiros ensaios acadêmicos. Daí meu esforço de falar aqui de pratos e panelas sujos, um assunto que jamais ocupará a Miriam Leitão e outros articulistas, com quem os cronistas, segundo Coelho, deram de concorrer.

Louças com camadas de gordura de costela não representam nenhum risco à economia. Tampouco, higienizadas, me­­­lho­­­rariam as faxinas da dona Dilma. Além de quê, em se tratando de temas que não fazem a mínima diferença, a lavação de pratos deve estar em colocação mais baixa do que limpar coco de cachorro, prática elevada nesta "era pet".

Pelejei para lembrar cenas do cinema e da literatura em que os personagens aparecessem à pia da cozinha, com trilha do Ennio Morricone. No máximo, me veio a Fernanda Montenegro escolhendo feijão em Eles não usam black-tie. E a Adélia Prado limpando peixes no belíssimo poema "Casamento". Na música, idem. Me parece que a afeição dos compositores é por quem se acaba no tanque. "De dia me lava a roupa, de noite me beija a boca..."; "ensaboa, mulata, ensaboa..."; "lava roupa todo dia, que agonia...".

Minha primeira experiência no ramo se deu ainda na adolescência, quando estudante de um seminário católico. Foi lavagem em escala industrial, porém lúdica. A cada semana, uma equipe de gurizotes ficava encarregada de lavar a louça de nada menos do que uma centena de comensais. Um bedel monitorava o serviço. Não ficasse bom, eram todos convocados a voltar às lides dos detergentes. Lerê, lerê.

Havia um ritual. Os mais parrudos carregavam as tinas de água fervente, que depositadas nas cubas deixavam o lavatório em nuvens não propriamente celestiais. Calculo 50 graus centígrados. Primeiro a gente mandava água nos copos, depois nos garfos e facas. Pouco mais do que crianças, enchíamos tudo de sabão para que os pratos deslizassem no alumínio rumo à foz. Chão de pato. Lavar louça só não era mais gostoso do que comer manga no pé.

Nem todos levavam jeito, se me permitem. Me recordo de um amigo que usou um cabo de vassoura para "centrifugar" os talheres, furtando-se de lavar um a um, tramando nossa alforria. Método reprovado, com penitência. Aliás, a quem interessar possa, método é tudo para quem pretende fazer carreira na pia.

Ouvi essa máxima de um padre, que me contou como um conhecido ganhou a vida tornando-se o melhor lavador de louça dos restaurantes europeus. Infelizmente, contou pouco para o setor de imigração. Foi dessa conversa que surgiu minha técnica de lavação, ainda não publicada, por falta de editor interessado. Mas posso garantir – deixa a louça tinindo e gasta quase nada, além de não causar prejuízos às mulheres que acabaram de fazer as unhas.

O roteiro é simples e reserva aos usuários uma tarde deliciosa em meio a bolinhas de sabão: tire todos os resíduos previamente com esponja, faça pilhas por tipo de recipiente, hierarquize a louça por importância e use sempre água quente. Não enxágue debaixo da torneira: é feio.

Já me disseram que esse negócio de lavar louça com método é TOC e que devo procurar um psiquiatra. Tem comprimidinho para tudo. Discordo – doido varrido varre chão, não limpa pia. No mais, meu pai, que não é dado a elogios – para não estragar os filhos – diz que lavo louça como ninguém. Não merece uma lápide, mas vale uma crônica.

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