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 | Foto: Antonio More – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Antonio More – Arte: Felipe Lima

Fiquei sabendo que vive em Curitiba um homem que trabalhou na gráfica do Vaticano. Era encadernador. Lá teve contato com o então papa João Paulo II e com Joseph Ratzinger, o futuro Bento XVI. Procurei-o. Resistiu ao encontro, quase levei um passa fora. É um tímido incorrigível, avisa. Teme que os vizinhos batam à sua porta, que o apontem na calçada como o sujeito que esteve muito perto de dois pontífices e coisa e tal. Tem 80 anos. Precisa de sossego para fazer o que sempre fez – restaurar livros.

Mas se rendeu, com a condição de que seu nome e endereço não sejam citados. Será aqui chamado de "P", de papa. "P" já tinha firmado seu nome como um dos principais encadernadores da capital paranaense – sim, houve um tempo em que eram tão conhecidos quanto o vigário – quando o maestro Edílio Donatti, seu cliente, lhe apresentou um sacerdote que atuava na Santa Sé. Aconteceu no Pilarzinho, na década de 1970. O viajante ficou arriado diante de encadernações aristotelicamente sublimes. Chamou-o para ir a Roma. Ele aceitou.

"Foi a mão divina", resume, sobre o tal do instante mágico. Partiu em 1978, sem saber bem por quê. O país ainda vivia o auge das coleções de fascículos da Abril Cultural, vendidos em bancas de revista, capítulo incontestável da nossa tardia "revolução da leitura". Estima-se que entre 1968 e 1982 foram comercializados 1 bilhão de fascículos e 11 milhões de enciclopédias – uma fábula. Havia serviço a rodo para encadernadores. "Eu tinha dinheiro no bolso para comprar três Vemaguetes. Mas topei mesmo assim", brinca.

Dois anos depois, "P" cruzava uma ruela do Vaticano quando esbarrou não em Sophia Loren, como podia desejar, mas em Karol Wojtyla, na companhia de um amigo comum. Papo vai e vem, falou-se da visita recente de João de Deus a Curitiba. Muito lhe valeu o pão e o sal oferecido pela gente daqui ao Santo Padre em 1980. "P" saiu da conversa como o "currritibano", e assim passou a ser chamado todas as vezes em que se encontraram.

As memórias de "P" são curtidas na emoção. Sugiro aqui que sejam roteirizadas, produzindo filmes tão incríveis quanto o uruguaio O banheiro do papa e o italiano Habemus papam, sem falar no já esquecido As sandálias do pescador, estrelado por Anthony Quinn. Merece. O longa terá inclusive cenas pitorescas: nosso conterrâneo chegou a servir pierogis a João Paulo II. Como o papa gostou, e é infalível, o fato concorre para afirmar que nossas iguarias polacas são melhores que as servidas em Cracóvia, Varsóvia e arrabaldes.

O mesmo vale para nossas encadernações, tratadas por Wojtyla como se fossem o Cálice Sagrado. O que não é de espantar. Só faltou botar luvas de seda. Pudera. As obras de "P" são costuradas à mão, podem ser abertas por inteiro e têm lombadas arredondadas, um verdadeiro convite à leitura. Parecem-se aos missais usados nas missas solenes, se me permitem, o mais belo espetáculo da Terra.

Sem bairrismos, sabe-se da tradição gráfica da cidade, da qual "P" é herdeiro. Nosso herói aprendeu o ofício no Senai e aos 17 anos liderava as oficinas da Papelaria Requião, na Dr. Muricy, onde se empregou em 1949. Não havia melhor casa no ramo. Ficou ali até 1965, quando abriu seu próprio negócio. O resto da história já contei.

Em 1985, "P" entendeu ser a hora de voltar. Pediu para se despedir do papa, que recebeu o "currritibano" em seu gabinete. Tinha então 40 anos de serviços prestados às bibliotecas, o que sensibilizou João Paulo II. Não lhe deu de presente um exemplar autografado de alguma carta apostólica, mas a garantia de que receberia sua aposentadoria pelo Vaticano.

Nunca mais se viram. Vinte anos depois, "P" mexia com tipos móveis e as folículas de ouro, em sua oficina, quando lhe avisaram da morte do Santo Padre. Baixou a porta do estabelecimento e se deu folga. Naquele dia, chorou a morte de um pai.

Em tempo. Não bateu o "santo" do paranaense com o de Ratzinger, então à frente da Congregação da Doutrina da Fé. Foi um relacionamento protocolar, sem chance de comerem juntos uma carne de onça regada ao "submarino" do Bar do Alemão. Paciência. "P" faz agora suas preces e apostas. "Será um papa negro", garante. Leu isso num livro antigo sobre as profecias de Nostradamus. Palavra de encadernador.

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