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 | Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O haitiano Reginald Elysee chegou ao Brasil faz dois anos. Trabalha pesado – para seu sustento e para decifrar o país que escolheu para viver. “Aqui o racismo está no olho”, interpreta – repetindo a máxima dita por uma brasileira, negra como ele: “Eu nunca fui discriminada. Fui olhada”, declarou, certa feita, a jornalista Glória Maria, sobre como se sentia antes de se tornar “Glória Maria”.

Pois Rei Seely – como Reginald prefere ser chamado – anda se digladiando com os rabos de olho que recebe, sem pagamento de impostos. Basta entrar – num shopping, numa loja, numa lanchonete – para ser alvejado, sem dó. O que as pessoas veem ou acreditam que veem é mistério. O que ele diz sobre si é que é um jovem caribenho de 26 anos, poucos quilos, nascido num lar tranquilo, na cidade haitiana de Gonaïves. É filho de um advogado. Cursou Filosofia, Língua e Literatura. Deu aulas de Francês para ginasianos.

Tudo ia bem, até que não. Cruzou florestas, chegou ao Acre, voou para Curitiba e aqui está, dividindo um apartamento com dois patrícios. Gosta do Brasil, apesar das olhadas fulminantes que o perseguem. Descobriu mares e terras. É ledor de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; e de Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. Embora desde os tempos de Gonaïves suspeitasse que seria um escritor, foi em terras tupis que sua vocação para as letras se manifestou. É grato, mas não esperem que rasteje pelo chão. Não é seu estilo.

A cada pedalada verbal, o autor não esconde sua metralhadora cheia de mágoas

Rei tem pelo menos dois livros prontos para o prelo e se enquadra na categoria “um autor à procura de um editor”. O primeiro é um romance – Refugiado feijoada e o mendigo cego – e parte da amizade entre um haitiano e um pobre diabo que encontra numa igreja brazuca. “O personagem haitiano vasculha o bolso e dá tudo o que tem ao pedinte brasileiro – dois reais. Acreditamos que quem divide recebe em dobro”, conta. O segundo livro, sem título, é uma coletânea de poesias – a maioria em tom de manifesto, qual um Marinetti caribenho. Versos como “Para você, cabeça de vento”, “Só um paf” e “Rei Terra” protestam, entre outras, contra as pataquadas da ajuda humanitária aos haitianos. Apertem os cintos antes de ler.

“Não existe uma política de verdade para a gente”, esbraveja, num bom português para estrangeiros, sobre as raias do desespero a que estão sujeitos os 2 mil haitianos que se mudaram para o Paraná. Para descarnar e desossar o assunto, criou estrofes idílicas, talhadas de ironia e deliciosas ratoeiras conceituais. Em cada entrelinha, um Triângulo das Bermudas. Não se trata de um poeta para iniciantes. Cada verso está afiado para morder a canela de quem espera o conforto de sentir pena. Rei não pede migalhas; pede que o leitor dê a si mesmo e olhe para o poeta negro – de frente.

A conversa se dá com vocabulários próprios. Para estar com Rei, é preciso se alfabetizar. Expressões como “refugiado de feijoada” e “casa da churrasqueira” funcionam como agulhadas de vodu. São cheias de marra. Também inventa palavras – “PAF”, por exemplo. Quer dizer algo como baforada, atmosfera, clima e entorpecimento. Decidam. A cada pedalada verbal, o autor não esconde sua metralhadora cheia de mágoas – ele a aponta contra a ignorância brasileira em relação ao Haiti, primeiro país independente das Américas, primeiro e isso e aquilo. Quando conta, silêncio. Em volta, só a imagem televisiva da terra arrasada, como se mais nada houvesse. Nem Papa Doc.

Versos de Rei Seely

Oi terra! Tanta dor de desigualdade no mundo Humanidade é igual ao princípio de contrario Yin-Yang, terra e céu, calor e frio... Existirá paraíso ou inferno? Tanto grito de marginalização sem felicidade A gente ordena suas leis para governar Metrópole e colônia, escravidão e liberdade Existe capitalista ou humanista? Tanta paixão de divergência Ent

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Mas melhor não se apressar em reduzi-lo a um panfletário amargo, às voltas com o atraso no aluguel, um Maiakóvski da loja de conveniência – como escreveu Zeca Baleiro. Ele é sobretudo um sátiro, desses que não dá nós de tripas no senso comum. Claro, não espera ser amado. Nem pelos seus. Daí não poupar os compatriotas, os políticos de seu país. Nem a si mesmo. “Quero que me diga o que achou dos meus versos. Preciso de crítica”, avisa esse haitiano porreta, moldado no som e na fúria. Tudo do que necessita é de um palco, urgente, para anunciar que não veio juntar uns trocos no Brasil – ele faz parte do Brasil.

Até pouco tempo, Rei estava à frente da banda haitiana Skind Music Group. Letrista, dizia versos nas apresentações, apesar da suspeita de que ninguém entendia nada. Caetano Veloso sofre do mesmo mal, sabemos. O vocalista voltou para o Haiti e a Skind descansa em paz. Rei não. Quer ficar, “porque aqui é legal”. Procura seu público, que não precisa ser de nenhuma América em particular, uma vez que “um poeta é universal”. Faz planos – encontrar, sei lá, um “balcão de cultura”, um salão ou um sarau, no qual possa falar do Haiti, dos EUA, do Brasil, sem muita frescura. “Somos todos refugiados”, resume de posse de uma hashtag, que é uma poesia e uma frase cheia de razão.

O resto é conversa fiada – Rei anda preocupado com as altas do dólar. Eu também.

  • Rei Seely, o poeta haitiano de 26 anos: “Quero ficar no Brasil. Não existe um escritor haitiano que fez carreira aqui.”
  • Poeta é formado em Filosofia e Língua Francesa. No Brasil, trabalhou cinco meses como professor do Wizard.
  • Desde sua chegada ao Brasil, em 2013, Rei escreveu um romance realista e tem material para um livro de poesia.
  • “Sujos ao Preço” e “Sujos à Cinza” estão entre as expressões muito próprias do vocabulário criado por Rei Seely.
  • “Minha alma está triste, porque a cor da minha pele é meu CV [curriculum vitae]” - trecho do longo poema “Só um paf”.
  • “Eu não sou a lixeira da América [...] Você é sanguessuga com sua ajuda humanitária” - trecho de “Para você, cabeça de vento”.
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