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 | Henri Milléo / Gazeta do Povo
| Foto: Henri Milléo / Gazeta do Povo

Foi de chorar. Há poucos meses caiu num concurso público para varredor de rua, em Cambé, Norte do Paraná, qual era o bordão da personagem Valéria, do Zorra Total. E qualquer coisa sobre Michel Teló. Sinto muito lhes puxar pela memória essas duas mortadelas indigestas. Por minha causa vocês correm o risco de passar de hoje a domingo em companhia das frases mais batidas do que o "Ordem e Progresso" da Bandeira Nacional: "Ah, como eu tô bandida" e "Ah, se eu te pego". Acuda, acuda, acuda.

Mas tem remédio. Um método neurolinguístico com cura garantida – ou seu dinheiro de volta – aconselha se autoajudar substituindo a informação ruim por uma boa. Sugiro colocar no lugar dos olhos vesgos de Valéria e da dancinha safa de Teló um sujeito chamado Luís Sérgio Della Roveri, 38 anos. Paranaense de Apucarana, é exímio violinista. A Primavera, de Vivaldi, figura entre suas especialidades. Para surpresa, o instrumentista trabalha como servente na Cavo – empresa que faz a limpeza pública de Curitiba. Ah, suspeito que seria reprovado na sabatina lá de Cambé.

Explico. Ocupado com as partituras, resta-lhe pouco tempo para humorísticos da tevê e paradas de sucesso. É um estranho no ninho. Literalmente. Entre os mais de 2,5 mil funcionários da limpeza do município há notícia de cantores sertanejos, atletas e coisa e tal. Mas nunca se ouviu falar de um operário que empunhasse a vassoura por seis horas/dia e as cordas finíssimas de um violino nas oito horas seguintes.

Aos fatos. Todos têm seus dias de infortúnio. Nos "dias" de Luís, uma leva de alunos foi tocar violino em outra freguesia, deixando-o sem ganha-pão. Na mesma época, o casamento de 17 anos virou água. Sua única certeza dali em diante era a data de pagar a pensão das crianças. Pois pediu licença e foi à luta. Primeiro a Cavo o mandou para a roçagem. Depois, para a Praça Tiradentes, local que lhe serve como uma luva.

A praça é o Marco Zero, sabe-se. Está ali o Pelourinho (lerê, lerê), a Catedral e o sítio arqueológico que revelou uma calçada do século 18. Tem lá o seu encanto saber que uma das pessoas que cuidam de parte desse patrimônio fala de Brahms e de Mozart como se fossem seus vizinhos da Vila Osasco de Colombo.

A Tiradentes, aliás, já presenciou duas audições do violinista gari. Ano passado, ele tocou para seus companheiros de lida. Suspeita-se que tenha sido o primeiro "garis in concert" da história do país. Esta semana, quando conversamos, deu uma palhinha e deixou os passantes boquiabertos ao interpretar Perhaps Love ["talvez o amor seja um lugar de descanso, um abrigo da tempestade"]. Diante dessa cena, como disse o poeta Walt Withman, "a vida fez sentido até o dia seguinte".

Luís Sérgio tinha 15 anos quando descobriu o violino, numa igreja evangélica. Gamou. Disseram-lhe que o instrumento lhe exigiria muito estudo e destreza, algo difícil para alguém que nascera com um braço meio torto. Não deu ouvidos a ninguém, domando ossos e músculos anos a fio. Venceu. Que medo poderia lhe causar uma Tiradentes inteira para passar a vassoura?

A quem interessar possa, Luís é divertido pacas. Conta que tinha fama de orgulhoso – "tudo passado". Parece coisa da Revolução Cultural na China, mas ele garante que a experiência na limpeza fez dele um homem livre. Não duvido. De longe, vejo-o amigo ajudando um engraxate; preocupado com as titiricas; entrando pelo alçapão para limpar a calçada do século 18.

Diante dele, impossível não lembrar do psicólogo Fernando Braga. Despistado de gari, ele varria a USP e notava que nem os amigos o cumprimentavam. Concluiu que a turma da faxina é invisível. Escreveu uma tese sobre ela. E nos "pegou" de jeito. Quem leu não consegue cruzar um macacão laranja sem se dar conta do tamanho da nossa cegueira, ah, essa bandida.

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