A geógrafa Fabiana Bianchini, 38 anos, é do tipo que não faz tudo sempre igual. Pode até se levantar às seis horas da manhã como diz a canção do Chico , mas o resto do dia faz dublê da cigarra e da formiga juntas. De braço dado com sua "confraria dos inconformados", professores da escola pública como ela, tem fôlego para levar alunos a um museu, bolar um concurso de grafite e ainda garimpar patrocínio para um estudante bamba em luta greco-romana. Day by Day.
Dia desses, caiu na mão da mestra uma cartilha política, dessas que ensina o abecê sobre vereadores, prefeitos, corrupção e o "escambau", temas que de tão surrados tendem a provocar três bocejos breves de uma espreguiçada longa. Mas não na pequenina Fabiana. No lugar de sepultar o livreto na gaveta, passou a mão no telefone, "cantou" 20 exemplares junto à CNBB e bolou um plano: carregou o lote para o programa de Educação de Jovens e Adultos, a EJA, do Colégio Estadual Marechal Cândido Rondon, na Vila São Jorge área encravada entre a Fazendinha e o Portão, em Curitiba.
Diante dessa pequena história, impossível não lembrar do grande Paulo Freire, para quem um mísero tijolo bastava para explicar o mundo. Que se esfalfem os que se ocupam em botar o educador para escanteio, mas não há imagem que mais nos orgulhe do que a do velho Freire em roda dos alunos, dando asas à pedagogia do oprimido. Eis que com Fabiana e os seus tudo aconteceu como dantes.
O milagre se deu numa das salas do cinqüentenário Rondon. A turma da Fabi um pequeno exército de homens e mulheres que abandonaram a escola, alguns para mais de dez anos fez um exercício que mudaria suas vidas: comparou os princípios da cartilha com lembranças pouco honrosas da política tupi. Alguns episódios são de deixar mais encabulado que criança pobre em casa de madrinha rica.
É o caso dos trans-roça, ligando a zona rural à zona eleitoral feito um tapete mágico. Os alunos lembram. E dos salvadores da pátria, praticando sem pudores seu dom de iludir. Os alunos sabem. O dragão de São Jorge pôs fogo pelas ventas. Depois de tanta conversa, teve quem mandasse para os quintos o nome e o número do candidato em que votava feito compadre. E quem decidisse fazer as pazes com a urna resgatando o título que jazia na caixa dos guardados.
Ao petit comité só faltou mesmo o manifesto lido em praça pública e a passeata na João Bettega, ali perto. Foi tão bom, que a eleição já passou, mas os efeitos colaterais do estudo da cartilha permanecem. Esta semana, a classe formada por pedreiros, mecânicos, diaristas e domésticas estava de olho em mais uma eleição as americanas.
Marisa Cosmo, 31 anos, uma década longe da escola, é McCain até debaixo dágua, pois esse sim disse o que faria pela América Latina. "E ele tem uma queda pelo Brasil", defende. O operário de automotiva José Marcos Peres, 35, 18 de exílio da sala de aula, esconjura: compraria até um carro dos democratas.
Avesso à política, o baiano tomou prumo depois das aulas. Não se avexa. "Não morro de amores pelo assunto, mas é importante, né". Andou até assistindo a uns documentários na tevê e está afiado que só sobre o presidente negro dos gringos. "Sou Obama", proclama ao decalcar um mapa do Brasil em papel carbono como nos velhos tempos do grupo escolar. Esse vai ter saudade da professorinha.
Cá entre nós, noves fora, o mundo ficou melhor esta semana. Tanto nas bandas da América quanto nas cercanias do Cândido Rondon. Foi de lá, na saideira, que ouvi alguém falando em alto e bom som. "Eu também aprendi muito com a cartilha, ouviu". Era Maria Alves de Moraes, 50 anos, mandando recados de dentro da sala de aula. Sua voz fez um baita eco no corredor. Cai a tarde. Valei-nos São Jorge.
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