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 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima

Para o sertanejo paranaense, a vida é contada em geadas. Foi assim com Florentino Alves da Silva, 72 anos. Ele vivia na pequena Bela Vista do Paraíso, no Norte Novo, quando os céus mandaram sinais diabólicos – o frio de amargar, o tempo obsceno de tão limpo, o sol queimando sem dó os cafezais. Era 1966. Acabavam ali seus dias de agregado na fazenda de um rico português.

Fez o que fizeram outros. Feito um errante do Velho Testamento, mandou-se para Curitiba, que conhecia por alto, dos tempos de quartel. Tinha um plano ao chegar. Daria um troco à geada. Endereço de políticos, industriais e burocratas engravatados, a capital não se abriria em leque para um foragido das terras vermelhas. Mas haveria de querer bem a um alfaiate, ofício que abraçara quase em segredo.

Começara a se meter com os tecidos ainda guri, sondando a mãe, baiana de Riacho de Santana que fizera do Sul a sua beira. Nas "noites fundas", como diz o caboclo, essa senhora das roças de ouro verde pilotava uma velha Singer ou coisa assim. Era acolitada pela luz de uma lamparina só, e pelas promessas que tinha com os anjos e santos de Deus.

Florentino – que recebera esse nome de pia em homenagem aos nascidos na nobre Florença – fiou-se no tec-tec-tec da agulha furando as chitas, no fascínio do cabo de aço rolando a roca. Aprendeu de olhar. Com perdões à dor alheia, é bonito ouvi-lo falar da madureza daqueles idos. Merece trilha sonora imaginária – Lampião de Gás na voz de Inezita Barroso; Flor do Cafezal, com Cascatinha e Inhana, ambos com uma lágrima na garganta.

Primeiro, Florentino fizera calções, anchos, tal e qual os trajados pelos moleques pretos de Portinari. Depois, pedira a um amigo que lhe ensinasse o resto – a coser as camisas e os fatos. O sujeito faria o favor, mas com uma condição: que se virasse para lhe comprar um violino, em pagamento pela ensinagem.

Mais fácil seria cobrir com mantas todos os cafezais do que arrumar tanta prata. Negociaram feito dois mascates. Não sei como se acertaram, pois nosso herói é dado a sigilos. Mas é líquido e certo que, quando desembarcou no Terminal Guadalupe, sabia se virar com uma peça de tergal.

Vingou a geada fazendo serviços de terceiro nas tantas alfaiatarias daqui. Muitos levaram a fama que era devida ao sertanejo. Mas que nada. Florentino, quando jovem, adorava era ouvir a quem se destinavam aqueles ternos de fino trato, levassem ou não a sua mão. Um deles servira ao governador Jayme Canet, no posto durante a Geada Negra de 1975. Outro, a um célebre "desembargador". Assim por diante.

O alfaiate fala da clientela graúda com boca cheia. Até fazer pausa para a justiça. Quem lhe ajudou a pagar as contas, no duro, foi a Jovem Guarda (risos). Explica. Queria muito fazer trajes, mas havia quem os costurasse nos ricos magazines da Praça Osório, da Galeria Tijucas, nos ateliês da Saldanha Marinho. Restaram-lhe as calças boca de sino, moda que varreu o país – e as ruas, pois arrastavam no chão – até meados da década de 1970.

Especializou-se de tal forma no assunto que é capaz de falar como catedrático das diferenças entre as bocas de sino curitibanas, mais avantajadas, e as da região de Londrina, na versão pula brejo. Nem o mais convicto fã do iê-iê-iê suportaria os estragos dos terrões nas barras largas. Com todo respeito a Roberto e Erasmo, os boys do Norte preferiam as pantalonas curtas a ter de se acabar no tanque feito um pioneiro.

A moda passou. Os clientes que Florentino conquistou não. Seguiram atrás dele em cada endereço por onde andou, até se fixar numa portinha da Avenida Sete de Setembro, 3.440. O local é uma antiga garagem. Tem 12 metros quadrados, pé-direito de 2 metros, um sótão que parece de brinquedo. A placa pálida "Alfaiataria Florentino", com o número de telefone sem o "3" na frente, denuncia há quantas eras do gelo está ali.

A alfaiataria fica onde o biarticulado faz a curva. De dentro do busão, milhares espiam aquele comércio em miniatura, desafiando a terra de gigantes – a FAE ao fundo, o Shopping Estação mais abaixo. Quem passa pela calçada não resiste à tentação e mete o nariz no vitrô. Vê Florentino, agulha e linha. Aos que batem à porta, não nega um bom conselho sobre tecidos, inclusive o tergal, cuja aposentadoria lamenta. Repare que tem um termômetro preso à parede, talvez uma lembrança das geadas que o trouxeram até ali.

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