• Carregando...
 | Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O longa Philomena, de Stephen Frears, arranca lágrimas, inclusive as encravadas na face dos durões. Ninguém sai ileso da história real de Philomena Lee, a mãe menininha irlandesa que, em 1952, viu seu filho ser entregue a um casal americano por freiras desalmadas. Cena a cena, a gente se acaba, com ganas de fazer picadinho de madre superiora. Depois come uma pizza, e passa.

Para alguns, contudo, o filme faz mais do que dar golpe baixo nas emoções – mexe nos baús onde dormem segredos cabeludos. Foi assim com a carioca Rosângela Burbach. Ela descobriu ser adotada em 2013, mesmo ano em que estreou a obra de Frears. Ficou sabendo pelo método clássico – um parente ressentido disse ter mais direito a isso ou aquilo, afinal, “ela não era da família”. Ponham na vitrola Meu mundo caiu, na voz de Maysa – esta é a música.

Rosângela não era mais uma criança quando isso se deu. Estava perto de fazer 50 anos, tinha duas filhas, passado por dois cursos superiores e três casamentos. Mas recebeu a notícia como se ainda fizesse maria-chiquinha numa boneca de porcelana. Depois de estancar o sangue, fez o que qualquer um faria: pediu a verdade. Como os pais adotivos tinham morrido, apelou aos tios e primos, sem sucesso. Sacode, barata voa. Havia um mistério.

Restou-lhe fazer um ckeck-list nas memórias. Muita coisa passou a fazer sentido, em especial os fatos que nunca contava a ninguém, por um simples motivo – as pessoas não acreditariam. Rosângela lembra de ser maltratada, com todas as variantes de surras, bolachas e cascudos. De ter sempre os cabelos curtos, como se fosse um menino. De não ser mandada para a escola. De mudar de cidade sem motivo. De mal ter entrado na adolescência e ser dada em casamento a um homem 40 anos mais velho. Sofreu o diabo, e isso é só um aperitivo. Se um dia produzir uma autobiografia, vai ficar na estante ao lado dos escritos de ilustres hóspedes do calvário: Elza Soares (Cantando para não enlouquecer) e Odete Lara (Eu nua).

A “roda dos enjeitados” faz parte da nossa sombria crônica da infância

Toda imaginação é pouca para adivinhar o que ela conta. Trata-se de uma sobrevivente. Não precisa ser expert para suspeitar que a fibromialgia, a esclerose múltipla, os AVCs, o câncer e outras páginas de seu boletim médico são o saldo de tamanha dor superfaturada. “Eu não conheci justiça”, repete a mulher alta e bonita. Uma de suas suspeitas, aliás, é de que, se fosse um tipo comum, teria sido tratada como empregada. Como não era, sua figura de passarela virou moeda de troca.

Da revelação para cá, Rosângela se dedica a montar um dossiê. A solidão só não é maior porque goza da companhia dos fantasmas. Atrás de pistas, desbrava listas telefônicas, abre até caixas de sapatos. Na mesa da sala, a papelada, as fotos, as cartas, matéria-prima para as investigações que faz por conta e risco. Para seu desespero, falta sempre um pedaço; e sobra sempre uma fonte a lhe bater a porta na cara. A ojeriza só faz reforçar suas hipóteses.

A elas – tem 1.001 motivos para acreditar que sua certidão de nascimento é falsa. Sua adoção, ilegal. Data de 1963, mas ela teria nascido em 1965 ou 1966. Quanto ao cabelo “joãozinho”, a escola negada, a vida cigana, tudo leva a crer que os que a acolheram também a esconderam, para que não viesse à liça uma relação proibida, da qual era a prova. Por fim, o casamento “à García Márquez” com um homem velho parece ter sido um novo despiste para ocultar a “menina que não deveria existir”.

Quem acha que Rosângela leu muita fotonovela, como se dizia, balança ao ver as fotos autografadas, remetidas a ela por uma miss que fez carreira em concursos de beleza na década de 1960. Ou ao ouvir o que ela confidencia sobre oficiais cheios de estrelas no peito que passaram pela sua infância, sem mais nem por quê. Essas coincidências a atazanam. O pai e a mãe que não conhece são sombras projetadas na sua caverna particular. Há quem a chame de doida varrida.

Nenhum fato que Rosângela reuniu é de todo absurdo. A “roda dos enjeitados” faz parte da nossa sombria crônica da infância. Ninguém se espantaria ao saber de certidão forjada. Histórias de moças bem nascidas e solteiras, que tiveram seus filhos às escondidas, povoam nosso imaginário. Não surpreende que alguns bebês tenham sido negociados. Salvo as muitas trajetórias redentoras, a prática da adoção não foi de todo santa.

O que torna esse relato ainda mais incômodo é levantar a poeira das relações entre adoção criminosa e a ditadura militar. Na Argentina o assunto sacoleja os tribunais, não é de hoje. Em 1985, o filme História Oficial, de Luis Puenzo, escancarou esse pântano onde pisam nossos hermanos. O ativista Narciso Pires, do grupo Tortura Nunca Mais, observa que não há registros parecidos no Brasil, “o que não quer dizer que não tenham acontecido”. Rosângela deu um passo nesse sentido, ao procurar a Comissão da Verdade. Mas avisa que não queria ir tão longe – só esperava encontrar a mãe. Suas razões são fáceis de entender: alimenta a ilusão de que do lado de lá existe algo de bom à sua espera. Anda precisando.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]