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Vou fazer uma campanha – "Visite a Caximba. Você vai se apaixonar". Não é difícil chegar. Da Tiradentes, são 22 quilômetros em linha reta. Com as curvas, arredonde para 30. Siga pela Linha Verde no sentido Fazenda Rio Grande e vire à direita no "viaduto do trem". É do caminho a metade. Depois, tome a Estrada Delegado Bruno de Almeida e vá em frente, sempre, sempre. A Caximba é longe, longe, mas vale cada palmo de chão.

Quando digo isso, recebo de troco olhares de pouco-caso. Tem gente que a imagina uma ilha cercada de lixo por todos os lados, um aeroporto de urubus, um subúrbio de Bombaim. Nem vou comentar. A Caximba, assim como o Umbará – ali em riba – é a última trincheira de uma cidade reduzida a binários e quetais. Simples como isso. Ir até lá é como voltar para casa.

Carimbem na minha testa "bairrista", "reacionário". Não me importo. É de morrer de saudade ver aquela paisagem de silêncio, pinheiro e cerca de pau. Mas é bom prestar atenção em algo mais. A caximba parece, mas não de todo uma tela do Ricardo Krüger. Terra em transe. O muro de muitas das casas virou uma tribuna para faixas de protesto. Adoro a que diz: "Com o lixo na Caximba não podemos ver o céu. Que tal levar o lixo pro Batel?"

Como isso não vai acontecer nem no dia de Santo Antônio do Catigeró, melhor promover logo uma expedição, à moda Fawcett, rumo aos rincões da Zona Sul. Saída da Praça do Japão. Leve lanche. Desligue o celular. Conheça o admirável mundo ao lado.

Tenho cá meus palpites sobre o roteiro. Deixaria para depois a visita ao Aterro Sanitário, à aldeia Kakané Porã ou o tour social pelos loteamentos clandestinos. Sugiro uma atração mais caseira – conhecer o rancho fundo onde vivem Luísa Silvana Rakssa, 38 anos, e Edgard Edson Pilato, 42. O endereço que dividem com os filhos Bruno e André virou ponto de referência. Pergunta-se por ali se a mercearia ou a olaria tal ficam antes ou depois da "casa dos dois corações". Melhor explicar.

Quando o namoro de Edgard e Luísa engatou, em 15 de abril de 1990, o casal abriu uma conta conjunta para pagar o piso e o teto. Na hora em que os pedreiros bateram em retirada, os apaixonados – sabedores do afeto empenhado em cada taco da sala, em cada lajota da cozinha – decidiram colocar no frontão dois imensos corações de cimento, um símbolo que dispensa rodeios.

Não deu outra: o alto-relevo virou um monumento do bairro esquecido. Cada vivente que passa pela estrada sabe que na altura do 5.200 mora um casal que se ama. Tem chorume, tem faixa de protesto de penca, mas na Caximba os cupidos se divertem. É tão romântico que ao ver a casa de Rakssa-Pilato lembro de pronto a canção minimal de Herivelto Martins: "Quando dois corações se amam de verdade, não pode haver nesse mundo maior felicidade, tudo é alegria, tudo é ilusão..." Ai, ai.

Em visitinha ligeira à redondeza, fiquei sabendo que a canção-tema de Luísa e Edgard não toca nos realejos ou serenatas. Chama-se "Onde o amor me leva", gravada por Rosana ("pode ser que um dia em outro cenário possa o amor ser mais que um encontro diário..."). Já o filme desse filme, bingo, é Ghost: "Whoa, my love, my darling, I’ve hungered for your touch, a long lonely time." Yeah, yeah.

Luísa e Edgard são só delicadeza. Nasceram no cenário da Caximba. Ela lembra dele piá, vendendo coxinhas. Na adolescência, ouviu dizer que era um rapaz religioso. Ele, de fato, rezava antes de dormir pedindo a Deus uma boa moça para casar. Foi ouvido: cruzaram-se num casamento e dançaram feito os famosos do Faustão. Gêmeos com Touro. Ambos atleticanos. Pena, disse ele a si mesmo, ser menina tão novinha. Romperam e ficaram três anos sem trocar palavra, mesmo se vendo no ônibus de segunda a sexta.

Numa noite calunga, encontraram-se na novena de Nossa Senhora do Rocio. Veio a conversa fiada e a desculpa de emprestar um manual de datilografia. "A-S-D-F-G". Ele levou um capítulo por dia à casa dela, até chegar a Páscoa, dar-lhe um chocolate e pedi-la em namoro. Casados, firmaram uma receita certeira de vida comum: nunca dormir sem conversar; jamais levar mágoas para o dia seguinte. Têm os corações de cimento por testemunha. Maiokovski escreveria: "Em algum lugar do mundo, dizem que na Caximba vive um casal feliz."

Vejo estrelas no céu.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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