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 | Foto: José Carlos Fernandes – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: José Carlos Fernandes – Arte: Felipe Lima

"Andar de bicicleta dói o..." [risos] Documentei em foto essa piada abusada escrita num muro de Alfama, bairro boêmio de Lisboa. Vou mandá-la a um amigo cicloativista, só para zoar. E assim tenho feito. Acho inscrições urbanas um barato. Digo que comecei minha carreira de observador de frases infames ainda guri, em Registro, onde os ônibus da Penha e da Pluma paravam para um pipi antes de São Paulo: as portas dos banheiros ali são uma verdadeira suma de bobagens ["eis o lugar onde o forte se torna fraco..."], mas também um compêndio da filosofia estradeira.

Parecia uma curiosidade meio tarada, é verdade, mas logo encontrei um argumento erudito para assoprar minha consciência. Foi ao ler A Majestade do Xingu, de Moacyr Scliar, romance no qual explora a vida do médico indigenista Noel Nutels (1913-1973), um aficionado em frases de porta de banheiro e zonas de meretrício. Bem, se o grande Noel achava graça, tá liberado. Também posso.

E muros e portas só não bastam. Há também os cemitérios incríveis e suas lápides maravilhosas. São inscrições urbanas tanto quanto. As lápides dedicadas aos jovens deixam os olhos marejados – prove desse gosto. Já levei grupos de alunos ao Municipal para que entregassem à leitura dos testamentos gravados em bronze. Todos adoram, ou pelo menos é o que dizem. Devíamos formar uma confraria. Me contaram que num cemitério da Itália tem um túmulo em que está escrito: "Este homem viveu em Roma 40 anos e não perdeu a fé". [Risos] Quero ver.

Mas se preparem: o trabalho de arqueologia de rua nos deixa com o olho biônico. Já encontrei, por exemplo, a palavra "ternura" no meio de um muro que parecia ter presenciado a bomba de Hiroshima. Clico. Logo uma demão de tinta vai apagar tudo e nem eu mesmo vou recordar onde e quando encontrei aquela palavra poética no meio do caos. Tudo se vai como um sopro e só nos resta a memória, que sempre perde feio para o esquecimento. É questão de sobrevivência da espécie. Se lembrássemos de tudo, explodiríamos como a dona Redonda, de Saramandaia. Lembra?

Para piorar, a memória tem todos os defeitos do mundo – é parcial, traiçoeira, imprecisa e infiel. Leva-nos a descrever o Balneário de Barrancos como se fosse Búzios nos tempos da Brigitte Bardot. Catifunda vira Ava Gardner. Iludir é seu dom. Não por menos a memória ocupou "crânios" como Bergson, Bartlett, Halbwachs. Tornou-se objeto da literatura de Proust e Joyce. Hoje, irrita os contemporâneos seduzidos pelas promessas da velocidade.

Pois chupem o dedo. Mesmo que a declarem morta, a memória permanecerá nos enredando com suas manhas de desejo, ausência e saudade. Muros, portas de banheiro e lápides, tudo indica, servem de caderno para anotar nossa urgência de lembrar, mesmo que lembrar seja um verbo torto.

A propósito, uma das práticas de "apagamento" que mais me intrigam é a falta de registros nos locais onde viveram pessoas bacanas. Cheguei a sugerir ao dono de um restaurante que escrevesse na parede que ali havia vivido o educador Erasmo Piloto. Para minha surpresa, ele acatou. Virei freguês.

Agora, sonho ver registrado no hall de uma confeitaria da Avenida Sete de Setembro a informação de que o pintor Guido Viaro morava no local. É mais gostoso do que Marta Rocha: os clientes imaginariam o italianíssimo Viaro falando alto no salão de chá. Mágica. Convicta do poder desse mecanismo, a advogada Zuleika Giotto tentou convencer uma construtora a dar o nome do empreendimento à curitibana "Maria Polenta", santa mulher que vivera naquele terreno até 1959. Sem sucesso.

Resta, companheiros, apelar para nossas armas fuleiras. Os arruaceiros picham. Os criativos grafitam. Os solenes gravam em bronze. Quer saber? Na mesma Lisboa encontrei várias casas que trazem na frente pequenas placas dizendo: "Aqui viveu a professora Angelina Vidal" ou "aqui morava o poeta Antônio Castillo". São homenagens paroquianas, mas seu efeito é transnacional. Não tenho noção precisa de quem foram Angelina e Castillo, mas impossível não olhar para aqueles endereços e não imaginar as professoras e os poetas que admiro debruçados nas janelas. Não viveram ali, eu sei, mas para a memória, essa anarquista, tanto faz. Ela sabe que lembrar é o bastante para nada mais ser como dantes.

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