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 | Foto: Aniele Nascimento – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Aniele Nascimento – Arte: Felipe Lima

O eletricista Marcelo Micoanski se mudou para Curitiba faz três anos. Ao chegar, não recebeu as chaves da cidade ou flores das mãos da primeira-dama. Antes, amargou a condição de forasteiro: morava longe e ganhava mal. Para piorar, numa das viagens de visita à família, em Cascavel, ganhou como "prêmio" um vizinho de banco de ônibus cuja dosagem etílica piraria os dígitos de um bafômetro. O percurso de 490 quilômetros prometia ser um porre – como de fato foi.

Marcelo se despediu do sujeito dando graças, não sem antes deixar o número do celular, tamanha a insistência. Tomado pela generosidade própria dos embriagados, o cara prometera lhe arrumar um serviço. Dos bons. Dias depois, a surpresa. "Marcelo? Aqui quem fala é o Chemin..." Do outro lado da linha estava o engenheiro João Chemin, o "Mano", conhecido por sua fé na humanidade, já expressa em livro, inclusive, e provada na prática, a cada vez que contrata um dos desprezados da fila do Sine.

Queria saber se Marcelo era tão esperto nas lides da eletricidade como tinham lhe confidenciado. Estava precisado. O leitor atento ao noticiário há de entendê-lo. Em junho de 2011, o asfalto cedeu na altura do número 1.800 da Avenida João Gualberto, formando uma cratera de 30 metros de comprimento. Caos. A imprensa – que já não cobre buracos de rua com o apuro de antigamente – reviu seus conceitos, afinal, o "buraco do Cabral" é mais embaixo.

Alguns hão de protestar, alegando que o deslizamento se deu no Juvevê. Mas por certo concordam que a expressão "buraco do Cabral" é mais sugestiva, em especial quando se leva em conta o PIB, o IDH, o Índice de Felicidade Bruta e o valor do metro quadrado no bairro que fica a poucos passos da tragédia. Sem falar da ironia, essa "garota poderosa": soou como vingança da classe operária. Viram como é bom?

Para Chemin não teve a menor graça: o asfalto ruiu bem na frente do prédio de 24 andares que ele estava começando a erguer, o que lhe custou insuportáveis 15 minutos de fama e uns dobrados. Essa história fica para outro dia. O que importa dizer aqui é que o bêbado, o "buraco do Cabral" e o empresário deram uma reviravolta na vida de Marcelo Micoanski.

Mico, seu apelido, é filho de Paulo Micoanski, um dos bons homens do Oeste. Polaco até o último fio de cabelo loiro, é tão católico que se formou em Teologia e gravou dois CDs, pagos do próprio bolso, boa parte com músicas religiosas. "Em italiano", língua que o aproxima mais do Vaticano. Todos o conhecem na vila onde mora: sabem que podem contar com ele para a reza e para a moda de viola, assim como em caso de curto-circuito. Sim – seu Paulo é eletricista, e repassou o que sabia ao filho Marcelo.

Não foi a única lição. Ensinou-lhe também a correr, esporte para o qual precisaria de nada mais que um tênis e uma camiseta velha. Deu certo. Quando Mico tinha 10 anos, o professor Ângelo, de Educação Física, percebeu a resistência animal do piá de canelas compridas e peso de uma pena. Durante sete anos o aluno ocupou o posto de "promessa do atletismo paranaense". Primeiro, colecionou medalhas. Depois, decepções. Os patrocínios não vinham. Os maços de cigarro passaram a ocupar o lugar dos treinos. Deixou a escola. Ficou uma década sem encarar uma pista. O que aconteceu depois eu já contei.

O caso do acaso é que Chemin também corre, convidou seu operário para lhe fazer companhia e redescobriu o atleta. Deve ter ficado bobo. Trata-se, afinal, de um estudo para a ciência: depois de tanto tempo sem fazer exercícios, Marcelo correu 20 quilômetros – do Cabral ao Portão – com a facilidade de quem vai à venda. "Tinha esquecido como esse cansaço era bom. Lava a alma, sabia?" E prossegue, qual Haruki Murakami, autor de Do que eu falo quando eu falo de corrida, mais belo ensaio já escrito sobre a arte de correr.

Aos 28 anos, 1,80 metro, 72 quilos e taxas de gordura que humilhariam a turma do Medida Certa, Marcelo corre agora 10 quilômetros por dia. Não perde maratonas. Voltou a estudar. Às vezes, toca o telefone – é seu Paulo, lá de Cascavel. Nunca deixa de perguntar do Chemin, "seu pai aí de Curitiba..." Pai e patrão têm linha direta em meio a essa fiação toda. Faz sentido, como a vida, afinal.

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