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 | Foto: Aniele Nascimento / Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Foto: Aniele Nascimento / Ilustração: Felipe Lima

Há 20 anos, Flori Senger da Cruz repete o mesmo ritual de Dia das Mães. Abre a velha pasta vermelha com elástico – onde guarda documentos pessoais – e desfia linha por linha uma poesia de oito estrofes, a ela dedicada por seu filho Edson meses antes de morrer, em 1990.

"Mãe, três letras que simbolizam o amor. Palavra que traduz afeto e calor. Mãe, guardiã de crianças e da família. Mãe, esposa, mulher que a dor alivia..."

Flori nasceu numa família meio polaca, meio alemã. Seu nome foi retirado de um romance de moças lido pela mãe, Rosa. Mas não fazia o tipo "fada dos cachinhos". Reza a lenda que aos 9 anos já dirigia o calhambeque da família para entregar pão feito por seu pai, Bertoldo, padeiro de fama nas bandas do Bom Retiro. Foi assim, até que a ximbica girl bateu os olhos em Theo­­doro, o Tico, num baile da Sociedade Rio Branco. Casou-se com ele.

Edson, o mais velho dos quatro filhos do casal, teve os primeiros sinais de esquizofrenia logo que lhe apontaram os fios de barba. Difícil acreditar. O guri passou em dois vestibulares da UFPR – Estatística e Matemática – tocava violão e acordeão e era uma referência em rock-n’-roll para a moçada do Bigorrilho, onde a casa dos Cruz não tinha tramelas. Era só chegar e ensaiar no gramado dos fundos a utopia dos anos 70.

O sonho só acabou quando o médico Alô Guimarães avisou que o caso era sério e receitou Haloperidol, um remédio tão exótico quanto a calça boca de sino. Naquele dia, a filha faz-tudo do Bertoldo se converteu na mãe faz-tudo do Edson, o maluco beleza da Rua Frederico Can­­tarelli. Foram 15 anos de altos papos, rocks no ouvido e cápsulas azuis de butirofenonas diluídas em empadinhas e doces de padaria – aquele herdeiro de Woodstock só se rendia pelo estômago.

A rotina de Edson se dava na sala da casa. Ali escrevia e escrevia. Tomava hectolitros de café. Soltava chaminés com de três a quatro maços de cigarro por dia – sempre sem filtro. Vinis rodavam em alto e bom som. Vez ou outra, descia a rua para prosear com Lourdes, a vizinha toda ou­­vidos. Noutras, falava era mes­­mo com "Cedo ou Tarde", nome com o qual batizou Deus Nosso Senhor, com quem tinha colóquios infernais.

Enquanto isso, Flori passava rios de café na cozinha e se livrava das guimbas. Não foi de todo mal: ouviu muito Joe Cocker, Pink Floyd, Rolling Stones, Bad Company e Led Zeppelin. E se aprimorou na arte dos salgados e doces tarja preta.

"Mãe, palavra que brilha, brilho de amor e esperança. Mãe, palavra que maravilha. Simboliza na guerra, a bonança."

Um dia, Edson cansou das empadinhas de Haloperidol e aquele abraço. Quem acudiu Flori diante do filho morto foi a vizinha da frente – Maristela Requião, a quem ela manda um alô e obrigada. Depois veio o silêncio na sala. Restou o porta-retrato amarelo com a foto dele, a poesia guardada na pastinha vermelha e a mãe com o tempo em branco.

"Leoa, pura fera a proteger. Protege também com carinho. Maria, pura Maria a orar. Orar e chorar pelo filhinho."

Não tardou para que iniciasse seu terceiro estágio no ofício de faz-tudo – o de construtora de casas para marido, filhos e netos. Ninguém colocou na ponta do lápis, mas arrisca que tenha er­­guido uma Cohab inteira de so­­bradinhos e puxados, sempre vendidos, alugados ou perdidos. Não importa. Ao ouvi-la falar, suspeito que ergue casas do poeta trágico: nos seus quartos hão de se ouvir as músicas e comer os quitutes do destino.

"Faz do lar seu domínio e altar. Impõe à família paz e amor. Se há briga, é a primeira a chorar. Rainha do lar, olhar de calor."

Em tempo. Flori, aos 72 anos, já decidiu o futuro. Ela vai direto para o céu, onde um lugar a espera ao lado de Edson. Lá talvez descanse. Mas por ora, avisa, tem mais o que fazer: uma casa de praia para o Tico. "E lembranças a todos. A vida segue..." Com tragédias e alguma poesia.

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